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Este texto discute a importância da graça na experiência divina humana, como ela permite que o ser humano se abra aos espaços secretos do coração e da mente, descobrindo a dimensão radical e fundamental do amor de deus. Rahner argumenta que todas as realidades da vida, incluindo as 'outras coisas', têm a função de mediarem o encontro do ser humano com deus, que é oferecido através da estrutura sacramental da realidade encarnada.
O que você vai aprender
Tipologia: Provas
Compartilhado em 07/11/2022
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O jovem Rahner, no início de sua vida na Companhia de Jesus, teve uma experiência de Deus. E, com certeza, esta experiência foi fundamental para o desenvolvimento de sua espiritualidade e a construção de sua teologia. A espiritualidade inaciana, recebida por ele através da prática da oração, foi para ele mais significativa do que toda filosofia e teologia aprendida. Ele tinha a convicção de ter experimentado pessoalmente uma ação salvífica imediata da parte de Deus, conforme ensinam os Exercícios Espirituais de Santo Inácio. A experiência inaciana de Deus e o binômio transcendental-categorial são as colunas mestras do pensamento rahneriano. O ser humano é o ser do Mistério, tem que se haver com ele em todas as instâncias da sua vida. Este dado da abertura apriorística do ser humano ao Mistério inscrito na existência de cada um, faz com que este esteja sempre à disposição do horizonte último e indisponível da sua transcendência. O cristianismo afirma que tal Mistério não ficou mudo, nem permaneceu distante, mas se deu, em amor, ao ser humano. A auto comunicação divina realiza a abertura transcendental humana, pois significa a aproximação real daquele para o qual se orienta toda a vida humana no conhecimento e na liberdade. Rahner entende a auto comunicação divina como um acontecimento, não uma mera comunicação de verdades. O ponto objetivo marcado na história da humanidade, do aparecimento irrevogável de tal auto comunicação é o que a teologia denomina de “União Hipostática”. Através da chamada “Cristologia Transcendental”, nosso autor estabelece quais são as bases de compreensão deste mistério de tal modo que ele se torne acessível aos seres humanos de hoje. O segundo modo em que se dá a o imediato divino é subjetiva, acontece no interior de cada existência humana: a Graça. Esta, a partir de Jesus Cristo, é uma oferta permanente de Deus que quer que todos os seres humanos se salvem. Rahner afirma que esta Graça não age só nos limites visíveis do cristianismo institucional, mas há a possibilidade real de cada ser humano acolhê-la em sua liberdade, ainda que não a assuma a nível temático, reflexo.
Deus pode e quer tratar de modo direto com sua criatura; o ser humano pode realmente experimentar como tal coisa sucede; pode captar o soberano desígnio da liberdade de Deus sobre a sua vida. Esta afirmação constitui o núcleo da Espiritualidade de Santo Inácio. Uma espiritualidade é uma forma concreta de viver a fé, normalmente surgida a partir da experiência de alguém que se deixou “tocar” pelo Espírito de uma forma nova. Cada espiritualidade dá relevo a algum aspecto específico do modo de viver de Jesus. A espiritualidade inaciana nasce a partir da vida de Santo Inácio de Loyola^105 , basco nobre do séc. XVI que com mais nove companheiros fundou a Companhia de Jesus. Da experiência desses primeiros anos de Inácio, das suas intuições sobre Deus e sobre o ser humano, sobre o mundo e sobre a história, se foi plasmando o pequeno, mas profundo livro dos Exercícios Espirituais , que está na base, até hoje, da sua espiritualidade : procurar a Deus em todas as coisas^106 ; a gratidão face a tanto bem recebido^107 e a resposta, em amor, Àquele que nos amou primeiro^108 , procurando discernir por onde passa o bem mais necessário, mais urgente e mais universal^109. Na base da espiritualidade inaciana está a convicção de que Deus se põe em relação com a criatura. Para Inácio era evidente que se podia
(^105) Foi uma bala de canhão que, na defesa da cidade de Pamplona em 1521, feriu na perna um homem chamado Inácio de Loyola, basco de origem e cavaleiro da corte por opção. Ferimento que o obrigou a uma longa convalescença na sua casa natal, onde, à falta de alternativa, se dedicou a ler vidas de santos, surgindo daí a interrogação (que surpreendeu em primeiro lugar a ele próprio!): “Se eles fizeram tudo isto por Cristo, porque não eu?”. Partiu então para Jerusalém, com desejos de fazer-se eremita, mas não o deixaram ficar. E no regresso a Espanha, ao começar a ajudar outros, teve problemas com a Inquisição: “Que não fale de Deus se não tem títulos acadêmicos!”. Resolveu assim estudar. E na melhor universidade do tempo, em Paris. Ali entusiasmou outros companheiros de estudos para o seu ideal, “ servir somente ao Senhor e à sua esposa a Igreja, sob a direção do Romano Pontífice, [...] atender à defesa e à propagação da fé e o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs [...] E também pacificar os desavindos, ajudar e servir os que se encontram presos nas cadeias e enfermos nos hospitais, e exercitar outras obras de caridade... ” [Fórmula do Instituto, 1550]. Arrastou consigo homens como o destemido Francisco Xavier, o manso Pedro Fabro, o português Simão Rodrigues... e assim nascia a Companhia de Jesus. 106 “Atender como Deus habita nas criaturas, nos elementos dando-lhe o ser, nas plantas o vegetar, nos 107 animais o sentir, nos homens o entender” [EE 235]. “Trazer à memória os benefícios recebidos da criação, redenção e dons particulares, ponderando, com muito afeto, quanto tem feito Deus, nosso Senhor, por mim” 108 [EE 234]. “Trazer à memória os benefícios recebidos da criação, redenção e dons particulares, ponderando, com muito afeto, quanto tem feito Deus, nosso Senhor, por mim” 109 [EE 234]. “Somente desejando e escolhendo o que mais nos conduz para o fim para que somos criados” [EE 23].
caráter de lei, nem se limitam a criar um clima favorável e uma situação subjetivamente preparada para se achar a vontade de Deus. Eles são uma tentativa de dar e exercitar um método formal para achar esta vontade de Deus^115. Mas, então, como explicar uma atuação direta de Deus no ser humano? Rahner vai buscar a resposta nos Exercícios Espirituais: Somente Deus nosso Senhor dá consolação a uma pessoa sem causa precedente, porque é próprio do Criador entrar, sair, causar moção nela, atraindo-a toda ao amor de sua divina Majestade. Digo „sem causa‟ quando não há nenhum prévio sentimento e conhecimento pelo qual venha essa consolação, por meio dos atos de entendimento e vontade da pessoa^116.
Deus se comunica ao ser humano sem mediação de qualquer objeto. E quando Deus fala, o faz de tal maneira, que não deixa lugar para dúvida de que é realmente Ele que fala. Não há um objeto intermediário, pois é o próprio Deus que se comunica, atraindo para si o ser humano^117.
A partir de Manresa e durante o resto de minha vida, até à solidão de minha morte no mais absoluto isolamento, nunca considerei que a graça fosse um privilégio especial que se concede a uma „elite‟. Por isto dei os Exercícios a quantos acharem aceitável meu oferecimento de ajuda espiritual. E por que não? Afinal de contas o Diretor de Exercícios não transmite oficialmente, em virtude da natureza mesma nos ditos Exercícios, e apesar de seu caráter eclesial, a palavra da Igreja enquanto tal, senão que unicamente com toda circunspeção se limita a oferecer (se pode) uma pequena ajuda, com a finalidade de que Deus e o homem possam encontrar-se de um modo direto^118.
Uma vez perguntado se Santo Inácio não teria sido determinante com sua espiritualidade da onipresença de Deus e com sua ética teológica da decisão, Rahner respondeu:
Sem dúvida! Atrás de tudo o que fiz sempre houve um interesse pastoral e espiritual muito direto. E aqui gostaria de acrescentar que espero ter permanecido de algum modo fiel à espiritualidade inaciana de minha Ordem^119.
Essa chave de leitura da teologia de Rahner pode ser documentada e evidenciada pela presença de traços e valores espirituais em toda a sua obra. Efetivamente, é fácil encontrar nela temas inacianos. Um primeiro tema
(^115) Cf. RAHNER, Karl. Lo Dinámico em La Iglesia, Editiones Herder: Barcelona, 1968, p.125. (^116) ESCRITOS DE SANTO INÁCIO. Exercícios Espirituais. nº 330. Edições Loyola: São Paulo, Brasil, 2000. 117 118 Cf. RAHNER, Karl.^ Op. Cit. , p.137. Id. Palavras de Inácio de Loyola a um Jesuíta de Hoje. São Paulo: Coleção Inaciana, 1980, p. 11. 119 Id. La Grazia come centro dell’esistenza umana, (Intervista a Rahner e su Rahner in occasione del suo 70° compleanno), trad. it., Roma: Paoline, 1974.
inaciano é, por exemplo, a meditação sobre a própria vida à luz dos mistérios da história da salvação. Rahner se esforça para demonstrar como essa história da salvação é um percurso obrigatório pelo qual passa cada senda de vida e de amor humanos, como essa história de salvação oferece uma infinidade de chaves que permitem ao ser humano abrir os espaços secretos do coração e da mente e descobrir a dimensão radical e fundamental do amor de Deus. Todos os seus ensaios sobre os mistérios da vida de Jesus refletem essa metodologia dos exercícios inacianos^120. Outro tema tipicamente inaciano é o discernimento dos espíritos para reconhecer a vontade de Deus nas circunstâncias concretas da vida. Também nesse caso, Rahner estrutura uma antropologia teológica mística, a partir da experiência da fé se passa à fundamentação e motivação desta, porque a motivação da fé é racional e pneumática ao mesmo tempo.
O cristianismo é qualquer coisa menos uma explicação do mundo e da existência; ao contrário, ele é justamente a proibição de considerar definitiva e em si mesma compreensível uma experiência qualquer, por mais esclarecedora que possam ser. Menos que qualquer outra pessoa, o cristão dispõe de respostas últimas, dignas de trazer este rótulo: „Agora isso está claro!‟. Em outras palavras, ele não pode inserir o seu Deus como uma conta exata no cálculo da sua vida; pode aceitá-lo apenas como mistério incompreensível em adoração silenciosa, como início e fim da sua esperança e, portanto, como sua salvação única, definitiva e total^121.
Um terceiro tema inaciano é a compreensão e organização das verdades de fé em uma unidade mística e “arquitetônica”. Rahner experimentou na oração que o cristianismo é uma realidade unitária, uma orientação global, e não a sobreposição de verdades reveladas e compromissos éticos. Por isso fez de tudo para inventar fórmulas breves da fé, catequese do coração, que reduzam à unidade do amor de Deus a complexidade e a diversidade das unidades dogmáticas da fé cristã. Um quarto tema inaciano é o programa “encontrar Deus em todas as coisas”. A esse respeito, Rahner, a partir da tese de que o ser humano é um espírito no mundo, não elabora uma teologia de uma mera interioridade mística, mas privilegia uma teologia caracterizada pela mística da vida cotidiana. Amplia, portanto, o leque das suas reflexões para os momentos da vida cotidiana, como trabalho, o sono, o alimento, o ato de beber, de olhar, de
(^120) Id. La Grazia come centro dell’esistenza umana, (Intervista a Rahner e su Rahner in occasione del suo 70° compleanno), trad. it., Roma: Paoline, 1974. 121 122 Cf. Id.^ Escritos de Teologia VII.^ Madrid: Taurus Ediciones, 1969. p. 24. Ibid ., p. 26.
mundo não são mais simples “meios” para chegar a Deus. Elas são quase sacramentos que medeiam a própria presença de Deus^124.
Karl Rahner dialoga com o mundo a partir do que se tornou um marco em sua teologia: a virada antropológica^125. Como a razão humana se tornou a medida de todas as coisas, nosso autor demonstra que é justamente partindo da razão e da liberdade, que se pode fazer um discurso autêntico sobre Deus. O modo como Rahner pensa esta relação entre razão, liberdade e Deus, não se configura numa mera aceitação por parte da inteligência de um Deus que venha a ela de uma maneira totalmente exterior. Antes de afirmar que Deus tenha se aproximado do ser humano e que este deve aceitar esta Revelação, Rahner elucida que, é pelo que o ser humano é, na sua configuração humana mais profunda, e que se explicita na sua existência mais cotidiana, que existe nele abertura para uma possível Revelação divina. O dinamismo que capacita a inteligência e a liberdade é possibilitado por um horizonte que não se pode conhecer diretamente, embora seja o que possibilita todo o conhecimento e acaba sendo co-percebido nessa dinâmica. Tal horizonte da nossa transcendência é, portanto, Mistério, porém num sentido absolutamente original, uma grande contribuição de Rahner à reflexão teológica. O termo da transcendência humana, o Mistério, solicita do ser humano uma posição. A aceitação ou negação do conteúdo implicado no conceito “Deus” nem sempre corresponde à uma posição semelhante quanto ao horizonte da nossa transcendência.
(^125) RAHNER, Karl. The Theology of the Symbol. Theological Investigations V. London: Darton, Longman & Todd, 1961. p. 223-252. 126 Virada antropológica é uma expressão de Karl Rahner que propunha uma teologia onde o mistério de Deus seja compreendido a partir do mistério humano.
O dinamismo transcendental do espírito humano revela-se na experiência que o ser humano faz da sua subjetividade. Esta o distingue de todos os entes mais simples, que podem ser descritos como sistemas finitos, plenamente decodificáveis se descobrirmos os elementos que os compõem e as leis que os regem. Ao contrário destes entes, o ser humano é pessoa, o que significa alguém que se auto possui de forma consciente e estabelece uma relação livre com a totalidade do seu ser^126. O ser humano é capaz de reconhecer, até certo ponto, os elementos objetivos da sua história de vida que o condicionam de determinada forma e que são estudados, por exemplo, pelas ciências sociais. No entanto, mesmo que fosse possível a ele unir todos estes elementos, ainda assim o ser humano não se identificaria por completo nessa figura. Ele se apresenta sempre maior, mais amplo, do que a síntese objetiva dos elementos que o constituem. Não dá para dizer de uma vez por todas o que é o ser humano. E até mesmo se ele fizesse tal síntese, esta só seria possível, pois quando ele se “auto explica”, ele está se auto afirmando como o sujeito que realiza isto, e ao fazê-lo ele se experimenta a si mesmo como algo necessariamente prévio e mais primordial do que esta pluralidade^127. Esta característica do ser humano de ir além, de ultrapassar os dados objetivos, de compreender realidades como finitas, porque possui uma dimensão mais abrangente do que essas é o que o torna “sujeito”, porque o distingue fundamentalmente da mera objetividade. A experiência da subjetividade no conhecimento se dá porque neste somos postos ante um outro^128. Tomamos conhecimento que estamos presentes a nós mesmos pelo fato de nos encontrarmos opostos a um outro que é o objeto do nosso conhecimento. Esta experiência da própria subjetividade não se dá num espaço etéreo, a partir de uma rebuscada reflexão metafísica. Ela se realiza no conhecimento que o ser humano adquire para além de si, no mundo das coisas, “No conhecimento não apenas algo é conhecido, mas o sujeito que
(^126) Cf. Id. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 2004, p.46. (^127) Cf. Ibid. (^128) Cf. Ibid.
experimentamos de modo não temático este dinamismo divino no trato temático com os seres criados” 135. O horizonte para o qual tende a nossa inteligência está presente em todo ato de conhecimento e liberdade numa experiência que se dá nos mesmos moldes da experiência da subjetividade, de maneira atemática. Deste modo, num único ato de conhecimento há sempre duas maneiras de conhecer e três realidades conhecidas: Conhecemos o dado objetivo, categorial, através da reflexão temática. Nesta experiência, descobrimo-nos como sujeitos, como aquele em quem está se realizando o conhecer, possibilitado pelo horizonte desta transcendência, que assim como a nossa subjetividade, está presente ao ato de conhecimento de maneira irreflexa. Há um co experimentar, constitutivo do ser humano que possibilita o conhecimento objetivo. E isso é verdade mesmo quando este mesmo ato de transcendência torna-se o objeto da investigação humana. O que possibilita a objetivação do horizonte é a presença atemática, transcendental do mesmo horizonte, já que “o ato da transcendência é algo diferente da descrição deste ato; pois esta descrição é devida a uma reflexão sobre este ato, que lhe é sempre posterior e nunca o alcança perfeitamente”^136. Esta abertura que possibilita a transcendência do finito não pode se dar a partir do nada, do vazio, visto que não se pode superar o ser, transcendendo-o num dinamismo proporcionado pelo não-ser^137. O conhecimento dos seres como finitos, tem como condição de possibilidade a auto transcendência humana em direção não à uma totalidade de objetos concebíveis, o que ainda implicaria uma finitude, embora mais abrangente, mas é possibilitado pelo ser em plenitude, ocorre uma antecipação ( Vorgriff ) em relação ao ser absoluto. Observe-se que o conhecimento do finito nos faz atingir a realidade de um ser absoluto em si mesmo. Este ser é afirmado na medida em que, somos capazes de reconhecer, e assim, transcender a finitude das realidades categoriais: ou seja, é reconhecendo a finitude dos objetos que chegamos ao ser infinito^138. Este vasto horizonte que é condição de possibilidade de todo o conhecer, se está implicado na subjetividade humana, também não pode ser
(^135) Ibid ., p. 40- (^136) RAHNER, Karl. Conceito de Mistério na Teologia católica in O Dogma Repensado. Tradução: Hugo Assmann. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 163. 137 138 Cf. Id.^ Curso Fundamental da Fé.^ São Paulo: Paulus, 2004, p. 89. Cf. Ibid.
o próprio ser humano. Todo desejo humano de conhecer implica uma pergunta fundamental pelo ser dos entes. O ser humano quer conhecer justamente porque não é o ser em plenitude, ao perguntar pelo ser de cada coisa, mostra-se como finito, contingente^139. “Mas, justamente enquanto ele pergunta pelo ser, revela-se como não sendo simplesmente o ser; a questionabilidade implica distância e, portanto, o ente que pergunta não é o ser” 140. Por isto, apesar de presente ao ser humano, este horizonte não se identifica com ele. O ser humano se compreende como sujeito finito, porém habitado por um desejo infinito, tanto no seu conhecer quanto na sua vontade^141. É necessário assumir a contingência e a finitude do nosso próprio ser, embora ao fazê-lo, já as ultrapassamos em direção ao ser em plenitude que não pode ser outro senão Deus^142. Ao identificarmos o termo da transcendência humana, do horizonte apriorístico de todo conhecimento e liberdade com Deus, é necessário muito cuidado. Em primeiro lugar para respeitarmos o caráter específico da experiência transcendental. Nessa experiência, Deus é o já co-percebido, co- apreendido em todo conhecimento dos entes. Por isso quando afirmamos Deus como o termo da experiência transcendental, não podemos entender Deus com a densidade de afirmações que seu conceito comporta normalmente, provindas das mais variadas origens. Não podemos pensar nem mesmo em um conceito. O que nós afirmamos com o nome “Deus” é uma realidade já experimentada por nós. Neste nível, a experiência de Deus é atemática, realizada como aquele “para onde” da transcendência humana que possibilita a experiência do próprio sujeito e do conhecimento do categorial^143. Não é o ser humano que faz surgir a realidade, mas esta já se encontra dada, por um outro ser, mais pleno e originário que permite ao ser humano, fazendo a experiência dos entes, descobrir-se como sujeito Graças à relação com este ser. Esta relação originária não é de identificação, nem de posse, mas de abertura ilimitada para o ser em plenitude que se evidencia na abertura a todo o ser. Esta abertura ilimitada do ser humano a todo ser como
(^139) Cf. Ibid. (^140) Ibid ., p. 95. (^141) Cf. Ibid. (^142) Cf. Ibid ., p. 97. (^143) Cf. Ibid ., p. 98.
definido. Ele permanece sendo aqui o horizonte último de realização diante do qual o ser humano pode transcender as realidades categoriais, percebendo- as como o “ainda não” da saciedade definitiva do seu desejo. Sendo finitos e reconhecendo finitas as realidades em que vivemos, a „realidade absoluta‟ é susceptível de ser desejada, escolhida e amada pelo ato da vontade humana. Esta liberdade, se ocorre no mundo, na existência concreta, na história, é mediada por esta. A história na qual o sujeito vai-se construindo a partir da sua liberdade, não é um simples acúmulo de fatos realizados de forma meramente exterior pelo ser humano, pois “nós não apenas realizamos ações boas ou más, nós nos tornamos bons ou maus”^149. Deve-se compreender a historicidade como uma dimensão pertencente à natureza humana mais básica e como um momento sempre presente na auto transcendência humana^150. Esta importância fundamental da historicidade para a experiência da transcendência tanto no conhecimento quanto na liberdade, Rahner explica através do conceito de consciência ou conhecimento receptivo: um conhecimento no qual sair de si é e permanece sendo a condição de possibilidade para o retorno a si. O ser humano se descobre como sujeito diante de um objeto diverso de si mesmo. Ao conhecê-lo, o ser humano se percebe diferente de tal objeto que se torna assim, condição de possibilidade para que ele, partindo desse objeto, retorne a si mesmo, descobrindo-se como sujeito. Deste modo o “retorno a si mesmo” que traz a consciência da própria subjetividade ao ser humano, só é possível porque antes o sujeito aliena-se no objeto, numa realidade categorial distinta de si mesmo^151. Esta consciência receptiva que perfaz o ser humano é necessariamente uma consciência sensível, ou seja, que se encontra a si mesma através da matéria em todas as suas coordenadas espaço temporais, por ente material se entende o objeto sensível externo, o ser humano inclusive, o mundo, as coisas, os fenômenos. Este encontro com o ente material que alimenta a consciência sensível do ser humano e o faz chegar a si mesmo se dá no mundo, é o próprio mundo, entendido aqui não tanto como o cosmos, mas como a realidade
(^149) Id. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 2004, p. 101. (^150) Cf. Ibid ., p. 102. (^151) Cf. Ibid ., p. 104.
marcada pelo ser humano em seu processo de auto desenvolvimento, a história da humanidade^152. Isto porque encontrar a si mesmo a partir do ente material significa encontrar-se em algo que, em si mesmo não possui determinação nenhuma é pura possibilidade. Nem todas as inúmeras possibilidades do ser material se realizam e as que o fazem, não se concretizam num único ato. Por isto, a temporalidade, na qual as possibilidades se realizam, é uma dimensão constitutiva do ente material que por sua vez é inerente ao conhecimento receptivo do ser humano. A história é o emergir das possibilidades dos entes materiais com os quais o sujeito lida e pelas quais ele se conhece a si mesmo^153. E esta história é sempre também história da humanidade já que tais possibilidades inerentes ao ente material não se realizam todas em um único sujeito^154. Se a história é a concretização das possibilidades da matéria que compreende a maneira com que o ser humano se auto define em sua liberdade, está claro que este processo não se realiza isoladamente, mas coloca em rede todos os seres humanos, pois as opções de cada um se tornam a “alteridade” a partir da qual o outro ser humano descobre e constrói a sua própria subjetividade. Este é o específico da historicidade humana: estar numa comunidade de pessoas unidas espaço temporalmente. Tempo, mundo e História são mediações do sujeito para si mesmo e para o horizonte da transcendência^155. O mundo e a história, com sua teia de relações, não são cenários onde nos desenvolvemos como ser humanos, mas elementos fundamentais, sem os quais não é possível nos descobrirmos como sujeito e percebermos o horizonte sempre mais amplo que nos permite conhecer as realidades categorias. “Porque a matéria é um dos nossos componentes essenciais, nós mesmos construímos espaço e tempo como componentes intrínsecos da nossa existência”^156. Por isto, liberdade transcendental e categorial são dois momentos da liberdade humana^157 em que o ser humano se constrói de forma definitiva em
(^152) Cf. Ibid ., p. 120. (^153) Cf. Ibid ., p. 124. (^154) Cf. Ibid ., p. 124. (^155) Cf. Ibid ., p. 56. (^156) Cf. Ibid ., p. 55. (^157) Cf. Ibid ., p. 52.
Sendo apenas co-apreendido, co-percebido na atuação volitiva e do intelecto humano, tal horizonte que capacita o ser humano em sua subjetividade é chamado, por Rahner, de “Mistério”^163. Este termo na teologia de Rahner ganha uma acepção bem distinta das compreensões que usualmente se tem dele. Mistério não é uma ignorância provisória de algo que não se possa penetrar. Nem se refere a certas realidades que em determinado momento são impossíveis de ser verificadas. A compreensão rahneriana de “Mistério” é inovadora para a própria teologia. Na época do nosso autor se afirmava que havia vários mistérios, realidades divinas que não seriam acessíveis à razão humana, por causa da nossa condição de homo viator , de peregrinos sobre a Terra^164. Definindo Mistério como algo inacessível à razão, a teologia fazia desta o critério último para a definição de mistério. Basicamente a mesma posição presente na Modernidade. A contribuição de Rahner, de acordo com a sua reflexão transcendental, é que o que possibilita à razão ser ela mesma, o que lhe permite conhecer e desbravar o mundo das realidades categoriais é o Mistério, já que este capacita a razão para a auto transcendência, pois “todo entendimento claro está fundamentado na obscuridade de Deus”^165. Dessa forma de “conceito-limite” na Teologia, Rahner transforma o mistério em “conceito-básico”, originário, libertando-o do tribunal da razão como instância absoluta da realidade. Deste modo, a razão se descobre possibilitada por aquilo que parecia contradizer o seu ideal. Ela é a faculdade da clareza, do conhecimento, que permite ao ser humano manipular as realidades categoriais, mas é dessa forma, Graças àquela realidade absoluta, que não tem nome, que não pode ser delimitada, que,
Não permite que dele se disponha, mas que é a instância infinita e muda que dispõe de nós no momento e todas as vezes que começamos a dispor de alguma coisa^166.
Esta indisponibilidade em relação ao Mistério que abarca toda a vida do ser humano torna-se perceptível quando certas realidades criadas, momentos históricos ou situações existenciais o atingem provocando-lhe a experiência
(^163) Cf. Id. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 2004, p. 68. (^164) Cf. Id. Conceito de Mistério na Teologia Católica in O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas, 1970, p.160. 165 166 Cf. Id.^ Curso Fundamental da Fé.^ São Paulo: Paulus, 2004, p. 37. Id. Conceito de Mistério na Teologia Católica in O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 181.
da contingência. Nesses momentos especiais, principalmente diante da morte, o ser humano experimenta a fugacidade das coisas à sua volta, das realidades categoriais e de si mesmo. Somente assumindo a própria finitude o ser humano encontra um caminho para o Absoluto^167. O ser humano verdadeiramente sábio entende que todo o conquistado, o compreendido não é mais do que uma minúscula ilha num oceano imenso da realidade inexplorada^168. Tudo isto exige do ser humano uma atitude que brote do seu centro mais íntimo. Aceitar a própria contingência e a de todas as coisas, compreender que se está, em todo ato humano, diante de um mistério inabarcável, não é apenas uma atitude intelectual, mas solicita também a liberdade do ser humano. Por isso, diz Rahner, na medida em que essa transcendência solicita a liberdade e o amor, tal Mistério, horizonte desta transcendência pode ser chamado de sagrado^169. Desse modo, Rahner denomina tal termo da transcendência humana de “Mistério Santo”. “As duas palavras „Mistério Santo‟… expressam igualmente a transcendência tanto do conhecimento e liberdade, quanto a do amor”^170. Por ser algo que o solicita por inteiro, em sua inteligência, liberdade e amor, tal horizonte da transcendência pode ser aceito ou negado pelo ser humano. A transcendência que habita o ser humano é o fundamento de sua liberdade, ao mesmo tempo que uma questão colocada à sua liberdade. Negar o termo final da transcendência é possível ao ser humano porque este pode “desinteressar-se por algo e simplesmente abandoná-lo, ainda que tal realidade faça parte dele mesmo”^171. Rahner sistematiza três tipos de negação à experiência transcendental^172 l:
(^167) Cf. Id. Curso Fundamental da Fé. São Paulo: Paulus, 2004, p. 81. (^168) Cf. Id. Conceito de Mistério na Teologia Católica in O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 189. 169 170 Cf.^ Ibid ., p. 182. 171 Id.^ Curso Fundamental da Fé.^ São Paulo: Paulus, 2004,^ p. 81. 172 Ibid ., p. 43. Cf. Ibid ., p. 47.
Deste modo, podem-se afirmar duas maneiras de se relacionar com Deus: quando se responde à Revelação que ele faz de si mesmo ao ser humano na história e uma relação a priori , na própria dinâmica da natureza humana, enquanto este vem co afirmado transcendentalmente em cada ato de conhecimento e liberdade. Esta relação transcendental nos alerta para que, mesmo acolhendo a Deus na Revelação, não façamos dele uma realidade situada no mundo, que exista entre as realidades categoriais, um entre outros objetos. Isto porque o ato da transcendência é diferente da descrição posterior deste ato que nunca o alcança perfeitamente. Por isto não se pode aplicar simplesmente a palavra “Deus” ao termo da transcendência sem o perigo de um mal entendido, confundindo o conteúdo já objetivado deste com o tipo de experiência transcendental que se quer de fato chamar a atenção^177. A experiência transcendental não pressupõe um claro conceito de Deus. O dinamismo da subjetividade humana, em sua inteligência e liberdade, é a fonte originária de tal conceito, é a partir da experiência transcendental que se pode formulá-lo e expressá-lo, de maneira autêntica^178. Com isso, não se está afirmando que o que conhecemos de Deus pode ser colhido totalmente da experiência transcendental, o que anularia o valor da Revelação. Mas, quando esta acontece se dirige a um sujeito que já se encontra envolvido pelo Mistério da realidade que doravante se dará a conhecer. Esta distinção da experiência transcendental de Deus e seu conceito categorial, abre uma nova perspectiva para a negação de Deus. Sem tal distinção, Deus parece ser uma realidade categorial, suprema, excelsa, mas, de fato, apenas um aspecto do mundo, “um membro de toda a realidade”^179. No entanto, se assim fosse, onde encontrá-lo num mundo que não é mais habitado por prodígios e acontecimentos estupendos os quais só um poder e sabedoria divinos poderiam explicar? A fé não pode ignorar a realidade, de que a palavra “Deus” não vem tão prontamente aos nossos lábios nos dias de hoje^180. Muitos considerados “ateus” assim o são porque não podem enxergar claramente a presença e ação de um Deus que não seja outra coisa que não
(^177) Cf. Id. Conceito de Mistério na Teologia Católica in O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas, 1970, p. 177 178 179 Cf. Id.^ Curso Fundamental da Fé.^ São Paulo: Paulus, 2004,^ p. 85 180 Cf. Ibid., Cf. Id. Do you believe in God? Tradução Richard Satrachan. Toronto: Editora Paulist. 1969, p 102.
um aspecto do mundo. Não se pode aplicar tal termo tão prontamente a estes que desta maneira parecem negar Deus. Tal negação se dirige ao Deus conceitual, totalmente exterior e objetivado, talvez até mesmo se dirija a uma imagem desfigurada de Deus, pois só “quando se remete a este Mistério Santo deixa o conceito de Deus de ser um ídolo”^181. Porém se este mesmo ser humano aceita a sua própria contingência assim como a de todas as coisas e se experimenta diante do Absoluto, que dá sentido à realidade ainda que o designe por outro nome, ou mesmo o deixe anônimo, se ele ama com absoluta responsabilidade, serve ao ser humano e aceita a desilusão de sua própria existência, com uma última esperança neste sentido misterioso da vida que ainda não compreendeu não se pode afirmar que ele rejeite a presença de Deus que lhe é oferecida a nível transcendental^182. Mesmo no ateísmo “pós-moderno” que não é de cunho humanista, nem pretende devolver ao ser humano algo que a fé em Deus lhe tenha surrupiado da sua dignidade, mas professa simplesmente o niilismo pode-se enxergar uma crítica ao conceito de Deus^183. A ausência total de um absoluto que oriente a vida humana, o não envolvimento em grandes causas, a percepção da realidade vista como fragmentária e relativa, parece poder assegurar ao ser humano uma liberdade de opção que precisa ser defendida contra os sistemas exteriores, inclusive religiosos^184. Compreender que Deus não é uma instância exterior ao ser humano, mas que o capacita a ser ele mesmo, que Graça e liberdade não são opostas, poderia proporcionar uma abertura ao diálogo. Quanto mais as criaturas pertencem a Deus, mais livres elas se tornam^185 , a independência do ser humano cresce em direta proporção, e não inversão, à sua dependência de Deus. Isto porque não há uma oposição entre a criação e a redenção, a segunda é a plenitude da primeira. A consideração de Deus como o termo da transcendência humana, o Mistério Santo, também ilumina porque a simples pertença a um cristianismo explícito, reflexo e institucional pode ser, na verdade uma forma sublimada de
(^181) FRANÇA, Mario Miranda. Karl Rahner: Da experiência de Deus à Teologia. Ed. Loyola: São Paulo, 2005, p 13. 182 183 Cf. RAHNER, Karl.^ Curso Fundamental da Fé.^ São Paulo: Paulus, 2004,^ p. 89. 184 Cf.^ Ibid ., p. 90. 185 Cf.^ Ibid. Cf. Id. Do you believe in God? Tradução Richard Satrachan. Toronto: Editora Paulist. 1969, p. 12.