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Percepção sobre Sexualidade e Autonomia de Mulheres com Deficiência Mental: Estudo de Caso, Notas de aula de Construção

Este documento discute o papel da dependência social e as percepções equivocadas sobre a sexualidade e a autonomia de mulheres com deficiência mental. O texto analisa como essas percepções afetam a inclusão social e o desenvolvimento global dessas mulheres, além de apresentar propostas para a implementação de programas de educação sexual adequados.

O que você vai aprender

  • Quais são as percepções equivocadas sobre a sexualidade e a autonomia de mulheres com deficiência mental?
  • Como podem ser implementados programas de educação sexual adequados para mulheres com deficiência mental?
  • Quais são as implicações da dependência social para as mulheres com deficiência mental?
  • Como essas percepções afetam a inclusão social e o desenvolvimento global de mulheres com deficiência mental?
  • O que podem ser feitas para melhorar as concepções sobre a sexualidade e a autonomia de mulheres com deficiência mental?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Cunha10
Cunha10 🇧🇷

4.5

(324)

225 documentos

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3.2 AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA NAS ATIVIDADES COTIDIANAS
A inclusão escolar de pessoas com síndrome de Down e, consequentemente, sua
inserção e adaptação aos diversos contextos, na opinião de Lúcia Martins (2003), está
diretamente relacionada ao incentivo ou restrições da família, no sentido de promover
maior independência desde a infância. Segundo a autora: “[...] é importante que os
familiares incentivem nas crianças atitudes de independência tais como: vestir-se, utilizar o
banheiro, comer sem ajuda, auxiliar nas tarefas de casa [...] preparando-as para sua
introdução futura no meio escolar.” (MARTINS, 2003, p.68). Os dados coletados sobre as
atividades desenvolvidas pelas participantes da pesquisa serão analisados a seguir, tendo
em vista, a relevância de fatores como independência e autonomia em atividades
cotidianas para inclusão social de pessoas com deficiência mental. As análises incluem o
desempenho em tarefas domésticas, em atividades de autocuidado, laborais e de lazer,
numa perspectiva que discute a construção assimétrica das relações de gênero.
3.2.1 O que eu gosto
As colagens de figuras, propostas na segunda oficina, permitiram conhecer
um pouco do cotidiano das mulheres e suas afinidades, o que gostam e o que não
gostam de fazer. Os painéis por elas construídos e os relatos e expressões não-
verbais que explicitaram o motivo pessoal de escolha de cada figura, permitiram o
levantamento dos seguintes dados:
L. escolheu predominantemente figuras que representavam alimentos. Seu
painel continha muitas imagens de frutas, pratos com refeições, refrigerantes e
outras bebidas, o que sugere que, para ela, uma das principais fontes de prazer
parece ser a alimentação. Sua fala também confirmou isso:
Eu gosto de iogurte. Eu gosto de Iogurte Light [...] Limão pra botar peixe. Meu
pai bota, minha mãe bota limão. Você sabe fritar peixe? É fácil. Meu pai faz
moqueca de peixe. Minha mãe também sabe [...] Adoro presunto, só não
gosto de queijo. Mas como mesmo assim (dá risada). Eu não gosto muito de
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3.2 AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA NAS ATIVIDADES COTIDIANAS

A inclusão escolar de pessoas com síndrome de Down e, consequentemente, sua inserção e adaptação aos diversos contextos, na opinião de Lúcia Martins (2003), está diretamente relacionada ao incentivo ou restrições da família, no sentido de promover maior independência desde a infância. Segundo a autora: “[...] é importante que os familiares incentivem nas crianças atitudes de independência tais como: vestir-se, utilizar o banheiro, comer sem ajuda, auxiliar nas tarefas de casa [...] preparando-as para sua introdução futura no meio escolar.” (MARTINS, 2003, p.68). Os dados coletados sobre as atividades desenvolvidas pelas participantes da pesquisa serão analisados a seguir, tendo em vista, a relevância de fatores como independência e autonomia em atividades cotidianas para inclusão social de pessoas com deficiência mental. As análises incluem o desempenho em tarefas domésticas, em atividades de autocuidado, laborais e de lazer, numa perspectiva que discute a construção assimétrica das relações de gênero.

3.2.1 O que eu gosto

As colagens de figuras, propostas na segunda oficina, permitiram conhecer um pouco do cotidiano das mulheres e suas afinidades, o que gostam e o que não gostam de fazer. Os painéis por elas construídos e os relatos e expressões não- verbais que explicitaram o motivo pessoal de escolha de cada figura, permitiram o levantamento dos seguintes dados: L. escolheu predominantemente figuras que representavam alimentos. Seu painel continha muitas imagens de frutas, pratos com refeições, refrigerantes e outras bebidas, o que sugere que, para ela, uma das principais fontes de prazer parece ser a alimentação. Sua fala também confirmou isso:

Eu gosto de iogurte. Eu gosto de Iogurte Light [...] Limão pra botar peixe. Meu pai bota, minha mãe bota limão. Você sabe fritar peixe? É fácil. Meu pai faz moqueca de peixe. Minha mãe também sabe [...] Adoro presunto, só não gosto de queijo. Mas como mesmo assim (dá risada). Eu não gosto muito de

sopa não. Eu bebo mesmo assim (dá risada) [...] Copo. Eu quero viu? Pra beber água. Todo mundo bebe. Adoro beber nisso aqui. Caneca (pronuncia de forma distorcida, porém compreensível). Tenho três em casa [...] Adoro hambúrguer, de sanduíche. Eu não gosto de maçã, mesmo assim eu como. Eu gosto mais de morango [...] Tem limão, bota peixe, gosto comer banana, gosto maçarão, iogurte light, cebola para botar na salada. Meu pai gosta cebola [...] Cuscuz, minha mãe faz. Guaraná. Caneca pra tomar café, tem uva. Adoro café. Eu tomo duas vez. Eu tomo dois pão e dois café. Eu gosto de feijão branco macarrão. Quando tem macarrão aqui no colégio, eu almoço aqui e chego em casa e merendo. Eu como muito, mas eu paro na hora. Meu preferido é arroz, bife, macarrão, farinha, muita carne no prato, ovo frito. Eu gosto de sorvete. Gosto sorvete de morango com chocolate.

L. escolheu figuras, representando objetos e ações que faziam parte de seu dia-a-dia, tais como: móveis, eletrodomésticos, objetos e atividades de lazer. Ela escolheu também figuras de acessórios femininos, ressaltando que adora se enfeitar, o que sugere vaidade. Este dado guarda relação com os achados de Lígia Amâncio (1994) numa pesquisa sobre os estereótipos socialmente vinculados ao feminino e ao masculino. Em primeiro lugar, a autora destaca, na lista de estereótipos associados à mulher adulta, os adjetivos relacionados à dimensão física, tais como: bonita e elegante. Isto implica, segundo Lígia Amâncio (1994, p. 64), no fato de que “[...] a definição de pessoa adulta, subjacente ao estereótipo feminino, encontra-se, assim, limitada às funções afetivas e de objeto de desejo, às quais se associa a ausência de qualidades orientadas para o trabalho e para a autonomia individual”. O relato a seguir é ilustrativo:

Adoro anel, colar. Perfume. Tem malte pra pintar unha [referindo-se a esmalte]. Adoro planta, minha casa é cheia de planta [...] Eu escolhi pia, por que todo mundo tem pia. Cama pra gente dormir. Caneta. Por que minha mãe tem do bar pra anotar, assim se pessoa pega cerveja, pra anotar nome de pessoa. Lavo prato [...] Tem sala de jantar, tem sofá, onde eu sento. Tem varre casa. Eu. Todo mundo faz, eu, minha mãe, minha irmã, meu pai também passa [menção à vassoura]. Ferro eu não passo não, minha mãe não

sendo esta pessoa uma mulher, como é o caso das participantes deste estudo, estas características estariam duplamente associadas a sua identidade. Deste modo, entende-se que ser mulher com síndrome de Down representa, portanto, uma condição duplamente desfavorecida. Tanto no que se refere aos estereótipos de dependência, submissão e fragilidade atribuídos à identidade feminina, considerados “defeitos” pelo contexto social, quanto pela síndrome que, por si só, constitui um “defeito” genético e leva à deficiência mental, socialmente concebida como condição que resultaria também em dependência, submissão e fragilidade. Quanto ao painel construído por A., ele continha figuras que representavam partes de uma casa, tais como: cozinha, quarto, imagem de uma pia. A jovem A. informou que, em sua casa, ela fazia a própria cama, porém não cozinhava, nem passava ferro em roupas. Em seu painel predominaram imagens de celulares e casas. O motivo pelo qual escolheu várias figuras representando o celular transparece um desejo:

Um celular. Vou comprar celular um pra mim.

A respeito das imagens de casas, não obstante existissem à disposição figuras de residências humildes, ela escolheu uma grande casa com piscina, outra com dois andares, diferindo bastante de sua realidade sócio-econômica. Este fato, possivelmente, representa um desejo de morar em uma residência daquele tipo, sem desconsiderar que o predomínio deste tipo de imagens pode se justificar pelo fato dela passar grande parte do tempo em sua casa, local que lhe é bastante significativo, como se percebe no diálogo 4 a seguir:

A. – É. Casa. A sala. P. – Por que você escolheu a sala? A. – Tem varanda. P. – Na sua casa tem varanda? A. – Tem.

(^4) Para assegurar, com fidedignidade, os sentidos dos conteúdos verbalizados pelas participantes, registra-se, em alguns momentos, as perguntas na íntegra. A pesquisadora é identificada pela letra “P”.

A. escolheu muitas imagens de alimentos, a exemplo de iogurtes, carnes e pratos com refeições, café, alface. Complementou, dizendo que gostava de comer de tudo, como está ilustrado na fala a seguir:

Tudo. Arroz, feijão e frango, presunto.

Além disso, relatou gostar de usar o computador na escola.

P. – Quem gosta de computador? A. – Eu. P. – Você usa computador aonde? A. – Na escola. P. – Você gosta de que no computador? A. – Esqueci o nome.

A. relatou que gostava de ouvir música. Em seu painel, constavam ainda duas figuras representando relógios de pulso. Quando questionada, ela respondeu que não tinha relógio e diante da pergunta sobre quem sabia ler as horas, ela ficou calada. Apenas L. respondeu, dizendo:

Sei. Eu já fui treinada. Eu tenho livro. Eu esqueci o nome? Se chama Geografia. Tem 1 hora, 2 hora, 3 horas, 12, 15 hora, 16, 17 hora.

José Schwartzman (1999b, p. 63) faz referência a um estudo desenvolvido por Sue Buckley e Bem Sacks (1987), afirmando que dentre os adolescentes com síndrome de Down, por eles avaliados, “[...] poucos conseguiam ler as horas em um relógio [...]” Esta informação pode ser constatada também neste estudo, pois nenhuma das participantes mostrou possuir este domínio. A despeito de L. afirmar que sabia ler as horas, ficou evidente que, de fato, não havia adquirido essa habilidade ainda, quando lhe foi solicitado dizer que horas marcava o relógio da pesquisadora. Em relação a C., também foi necessária a formulação de perguntas simples, que muitas vezes precisaram ser repetidas para se tornarem mais compreensíveis. Isto porque C. demonstrava maior dificuldade de compreensão, além do

deve ser ativamente ocupado pela figura masculina não cabendo apenas à mulher os afazeres domésticos. Vale ressaltar que o modelo familiar do qual L. faz parte é de uma família nuclear, em que o genitor sempre foi responsável por prover a família com recursos financeiros, e, portanto, trabalhou fora até aposentar-se e a genitora sempre ficou responsável pela criação dos filhos e pelas tarefas domésticas. A despeito de considerar que as tarefas domésticas devem ser desempenhadas tanto por homens quanto por mulheres, quando fala do que deseja para seu futuro, em relação ao tipo de trabalho que irá realizar, L. reproduzia o modelo familiar afirmando:

Eu não quero trabalhar não [...] Prefiro trabalhar na casa mesmo. Pra ajudar minha família. Meu pai vai trabalhar, se Deus abrir porta pra ele. Tem meu irmão que estuda e trabalha. Meu irmã trabalha, estuda, só chega em casa nove horas da noite. E eu não preciso trabalhar [...] Eu sozinha com minha mãe, aí eu não preciso trabalhar. Trabalhar não. Penso fazer um curso. Curso que homem faz e que mulher faz. Eu vou ajudar minha mãe. Não tem ninguém para ajudar minha mãe. Quando chegar do colégio eu vou ajudar.

Sua identidade se constrói, reproduzindo modelos que ela aprendeu no convívio familiar, os quais restringem a mulher ao espaço privado, doméstico. L. não almejava uma profissão, desejava ajudar nos cuidados com a casa, assim como aprendeu com a figura materna. Somada à identificação com a mãe, encontra-se a falta de oportunidades relacionadas ao aprendizado de uma profissão, já que não freqüenta nenhuma oficina profissionalizante, o que diminui suas chances de uma possível inserção no mercado de trabalho. Mesmo tendo o exemplo de uma irmã que trabalha fora de casa, L. não se imaginava tendo uma profissão. Cogitava a possibilidade de fazer um curso, o que lhe manteria na condição de estudante, de dependência em relação às outras pessoas. Quanto às profissões, a fala de L. demonstrava claramente a assimetria característica da construção social do ser homem e do ser mulher. As profissões que atribuía à mulher eram aquelas socialmente menos valorizadas e que existem para subsidiar o trabalho do homem, como é o caso do exemplo que dá sobre a secretária. Em seu discurso, a mulher aparecia numa função auxiliar e, portanto, subjugada e subvalorizada em relação à

profissão que atribuía ao homem. A mulher era citada como secretária ou enfermeira, ao passo que o homem aparecia como médico e gerente.

Mulher pode trabalhar com o médico, secretária. Ajudar médico. Ser secretária de clínica, secretária do colégio. Se mulher trabalha na loja, homem também trabalha na loja, nenhum pobrema [pronúncia utilizada para designar problema]. A mulher trabalha para homem. Esqueci nome... Não tem vendedor, caixa, dono de loja. Como é o nome? Gerente!

A dominação masculina se desvela nos discursos cotidianos de modo naturalizado. Sutil e simbolicamente, a hierarquia se legitima e a dominação, apontada por Pierre Bourdieu (2003), aparece na ordem do discurso, revestida da ideologia masculina, incorporada no habitus. A condição de deficiência de L. parece reforçar a subordinação e dependência relacionada à identidade feminina, visto que, nem mesmo as profissões citadas como eminentemente femininas, ela almeja. Silvana Blascovi-Assis (1997, p.24-25) esclarece sobre o preconceito ainda vigente relacionado à mulher e à pessoa com deficiência:

O mercado de trabalho vem discriminando até hoje, em nossa sociedade, a mão-de-obra da mulher e também do deficiente. Existem profissões que são claramente atribuídas às mulheres, como o serviço doméstico e todo aquele que é considerado como rotineiro e não exige grande esforço mental. Além da distribuição discriminada de serviços, essas pessoas ainda sofrem pela diferença da remuneração e pela exploração a que estão sujeitas, de acordo com suas “habilidades” ou “deficiências” [...] Ao deficiente mental são oferecidas poucas ou nenhuma chance de trabalho, fazendo com que ele não seja considerado produtivo [...]

A atividade laboral, que proporciona para algumas pessoas, total ou parcial independência em relação às figuras paterna e materna e confere o status de adulto, foi concebida como desnecessária por L. e também pelas jovens A. e C. As duas últimas sequer aventaram esta possibilidade, respondendo sucintamente que não pensavam em trabalhar. Vale ressaltar que, de acordo com informações colhidas em prontuários, a mãe de A. sempre trabalhou em casa, executando tarefas domésticas, mesmo quando obtinha alguma remuneração lavando roupas, para complementar a renda do marido, que sempre trabalhou fora de casa. A dinâmica familiar de C. é um pouco diferente, pois a mãe chegou a trabalhar fora quando se separou do genitor de C., evento que ocorreu quando a moça ainda estava na primeira infância.

jovens que integraram o estudo realizavam atividades como lavar, enxugar e guardar pratos, arrumar e varrer as salas, as quais fazem parte do currículo, tendo em vista serem atividades de vida diária. Dessa forma, conclui-se que o ambiente de casa é pouco estimulador para o desenvolvimento destas atividades e, em geral, são as mães e as irmãs que ficam encarregadas das tarefas domésticas. Segundo os relatos de L., sua mãe era responsável, inclusive, pela depilação e pela escolha do vestuário. Isso implica numa constante manipulação do corpo, que acontece, em geral, apenas nos primeiros anos da infância, mas que, em muitos casos, perdura até a fase adulta quando se trata de pessoa com deficiência mental, julgada prévia e erroneamente como incapaz de realizar uma variedade de ações com independência. Sabe-se, no entanto, que a maioria desses comportamentos e atitudes é passível de ser aprendido e executado, bastando, para isto, que condições sejam oferecidas e o tempo individual para aquisição de um novo conhecimento seja respeitado. Na perspectiva de Lev Vigotski (1989, p.71), a deficiência não configura fator impeditivo para a participação efetiva em diversos contextos sociais, ou seja, “A própria criança tem tudo para chegar a ser um participante ativo da vida social.” 5 Para que a pessoa com deficiência mental passe a ser ativa em seu processo de desenvolvimento, é imprescindível que haja mudanças nas representações historicamente construídas a seu respeito, proporcionando maior respeito a sua individualidade e visibilizando seu potencial. Na atividade realizada na quarta oficina, em que foi utilizada uma caixa com diversos objetos, anteriormente citados, as três mulheres evidenciaram conhecimento sobre as funções de uma gilete, demonstrando que o homem usa para se barbear e a mulher usa para depilação. A. e C. afirmaram que não se depilavam. Por meio de gestos, expressaram que possuem poucos pêlos nas axilas, daí não necessitarem de depilação. L., por sua vez, relatou que tem muitos pêlos nas axilas e na virilha e demonstrou espanto em saber que as colegas não se depilavam, fazendo a seguinte observação:

Deus é mais! Tá podre! [Todas dão risada]. O meu tem um bocado, ó. [mostra as axilas].

(^5) “En el próprio niño hay todo para llegar a ser um participante activo de la vida social.”

O diálogo a seguir ilustra este fato:

L. – Você já tem né? [Refere-se a pêlos pubianos)]. P. – Pêlo? L. – Não, como é o nome? Na parte de cima. P. – Aqui é a vulva. Pêlo? Cabelo? L. – Sim. Eu tenho. Menina! Aí tá cheio de espinha. E aqui [mostra as axilas] tá. Não posso usar creme, só Leite de Rosas. Faço e boto Leite de Rosas. E creme também fica um negócio feio, um negócio assim [faz uma expressão de nojo, de repulsa]. P. – E quem faz suas axilas? L. – Minha mãe. Eu já fiz uma vez já [risos]. P. – E aí acertou? L. – Eu fiz aqui e fiz ... Agora não faço mais. P. – Por quê? L. – Eu! Tenho medo de cortar. P. – Quer dizer que é sua mãe que lhe depila? L. – É, minha mãe e minha irmã, mas eu gosto mais de minha mãe. Eu fico assim tremendo, não sei. Minha perna fica tremendo toda hora. Minha mãe pega acetona e tesoura aí faz assim [demonstra abrindo a perna]. Dá agonia. P. – Você tem vergonha de ficar nua na frente da sua mãe? L. – Não. P. – E de outras pessoas? L. – Também não.

Caso L. fosse incentivada a realizar esta atividade, provavelmente obteria êxito, mas a autonomia da pessoa com deficiência mental está, muitas vezes, comprometida e ameaçada pelas condutas de super-proteção por parte dos educadores. Embora L. tivesse condição motora e cognitiva para realizar a própria depilação dos pêlos pubianos, sua fala demonstrava receio, o qual, provavelmente,

A. – Usa. P. – Quem troca para você? A. – Eu.

C. verbalizava e gesticulava explicando que era a mãe quem trocava seu absorvente e ela mesma jogava fora. L. realizava com independência a atividade e demonstrava orgulho e satisfação por desempenhar sozinha esta ação, o que lhe fazia sentir-se capaz de ensinar e ajudar sua colega C. O trecho a seguir evidencia este fato:

Ninguém bota em mim não. Eu boto sozinha. Eu não gosto que ninguém bota não. Eu boto sozinha, eu sou treinada. Minha mãe que me ensinou, eu visto. Espia só vou te ensinar.

L. começou a ensinar A. e C., mostrando passo a passo. C. conseguiu posicionar e colocar corretamente o absorvente e L. concluiu dizendo:

Agora ela botou, eu só ajudei. É fácil. Aê! Parabéns!

Estas falas referendam a importância do convívio em grupo para o desenvolvimento das habilidades, pois é socialmente que o indivíduo desenvolve seu potencial, como ressaltam Lev Vigotski (1989) e Silvana Blascovi-Assis (1997), entre outros. Interagindo com outras pessoas, foi possível para L. assumir o papel de mediadora da aprendizagem, o que contribui para sua auto-estima, ao passo que C., apoiada pela interação com outra pessoa mais competente neste aspecto, aprendeu a realizar uma ação que sua mãe tendia a realizar por ela, a despeito de sua evidente capacidade para tal. A. disse que nada fazia no tempo em que permanecia em casa. Comprova-se a ausência de participação nas atividades cotidianas, que também não se justifica pela incapacidade de realizar tarefas domésticas. Esta situação reforça a dependência dos outros e pouco contribui para o desenvolvimento global de A. Tal apatia foi resumida pela participante L. com a seguinte explicação:

Ela não faz nada. Come e dorme.

Em alguns casos, condutas de superproteção ou descrença no potencial de pessoas com este tipo de deficiência justificam a falta de incentivo, por parte da família, para um maior engajamento destes indivíduos, em tarefas cotidianas. Por outro lado, as atividades desempenhadas pelas pessoas com deficiência estão, na maioria das vezes, na dependência direta da disponibilidade da família (BUCKLEY; SACKS, 1987 apud SCHWARTZMAN, 1999). Ainda abordando as atividades que integram o cotidiano destas mulheres, na próxima seção serão tratadas as possibilidades de lazer oferecidas às participantes e sua relação com a autonomia e a independência.

3.2.2 Lazer: vida social no cotidiano

Quanto às atividades de lazer, ficou evidente que estão, em sua maioria, restritas ao espaço doméstico, como ouvir música e assistir televisão. L. citou a ida à praia como exemplo de uma atividade de lazer que apreciava, mas que só ocorria esporadicamente, tendo em vista sua cidade não ser litorânea, o que implicava na necessidade de deslocamento para praias próximas.

A praia. Domingo pra praia. Pra Jauá, Arembepe [...] Nadar.

Ela também citou o Jorrinho , trecho de um rio que banha sua cidade e que constitui um local de lazer para os habitantes da região.

Eu gosto de aula de dança com ... [fala o nome da professora de educação física que lhe ensina ginástica rítmica na escola especial] , faço peça com ... [cita o nome da professora que ensaia peças de teatro na escola] , faço capoeira. Sonho com capoeira de colégio.

As atividades que lhe dão prazer acontecem na escola ou na casa, o que comprova as observações de Silvana Blascovi-Assis (1997) sobre as poucas oportunidades de lazer oferecidas às pessoas com deficiência mental pela sociedade.

Ginástica Rítmica, chegando a se apresentar em algumas comemorações de sua escola. Fica evidente que ela percebia as mudanças que estavam acontecendo nos comportamentos, anteriormente ditos masculinos ou femininos, e que a diferença entre os sexos não implicava em interesses e aptidões diferenciados. Interessante constatar que a deficiência mental não impediu que L. percebesse as transformações nos comportamentos, antes marcados como próprios de mulheres ou homens. A jovem L., mesmo apresentando uma limitação cognitiva, expôs uma opinião que desmistifica a visão essencialista de que existiriam atividades eminentemente femininas ou masculinas. As assimetrias construídas em função do sexo de pertença, ainda tão presentes nos discursos atuais, não encontraram ressonância na visão desta mulher com deficiência mental. L foi capaz de abstrair e pensar de forma destituída de preconceitos sobre o fato de que as aptidões e interesses independem do sexo do indivíduo. Trata-se da voz de uma mulher considerada deficiente mental demonstrando uma postura muito mais igualitária do que a de muitas pessoas com a cognição preservada e, até mesmo, com elevado grau de escolaridade, que, no entanto, não são capazes de transcender uma visão determinista e essencialista sobre a identidade feminina e masculina. Este fato leva a crer que qualquer programa de educação sexual não deve prescindir de contemplar a questão de gênero, com vistas a desmistificar e desconstruir concepções distorcidas a respeito do “ser mulher” e do “ser homem”. Diante destas apreciações sobre as atividades que integram o cotidiano destas mulheres com síndrome Down e sobre as restrições sociais decorrentes do estigma construído em torno da deficiência mental, passa-se às considerações a respeito dos conhecimentos sobre o corpo, evidenciados pelas participantes durante as oficinas, e das expressões relacionadas à sexualidade.

3.3 CONHECIMENTOS SOBRE CORPO E EXPRESSÕES RELACIONADAS À

SEXUALIDADE

Muitos autores, dentre eles Ferreira (2001), Glat e Freitas (1996), Omote (1993), concordam sobre o fato de que as pessoas com deficiência mental,

geralmente, evidenciam informações distorcidas e inconsistentes, ou mesmo, falta de informação a respeito do funcionamento corporal e da sexualidade. Este fato, em parte, deriva dos tabus construídos em torno da questão da sexualidade, principalmente no que se refere à sexualidade na pessoa com deficiência mental. Esta seção objetiva elucidar quais as concepções das mulheres com síndrome de Down que participaram desta pesquisa sobre aspectos anátomo-fisiológicos do corpo humano e sobre sexualidade.

3.3.1 Corpo feminino e corpo masculino

Em relação aos conhecimentos que as participantes demonstraram sobre corpo, foi possível perceber que as três mulheres não sabiam os nomes dos órgãos sexuais masculinos e femininos. C. pronunciava nomes desconhecidos e de difícil entendimento para designar o pênis e a vulva, por isso não foram aqui reproduzidos. L. empregava termos popularmente usados, tais como “pica” e “barata”, referindo-se, respectivamente, ao pênis e à vulva. Fisher e Krajicek (1974 apud SPROVIERI; ASSUMPÇÃO JR., 2005), quando definem os pontos a serem considerados em um programa de educação sexual, afirmam ser essencial adequar a linguagem referente às definições de partes sexuais do corpo e suas funções, para que seja acessível à pessoa com deficiência mental. Desta maneira, em alguns momentos, foi necessário recorrer à forma coloquial, em detrimento dos termos técnicos, já que estes não eram compreendidos ou não faziam parte do contexto das participantes. Foi preciso falar cabelo, em vez de pêlos pubianos, como comprova o discurso de L. sobre depilação.

L. – Você já tem né? [refere-se a pêlos pubianos]. P. – Pêlo? L. – Não, como é o nome? Na parte de cima. P. – Aqui é a vulva. Pêlo? Cabelo? L. – Sim. Eu tenho.

O papel masculino na fecundação é exposto apenas por L., contudo de maneira bastante vaga:

Homem faz engravidar a mulher, ele ajuda.

Quando questionada sobre gravidez, L. afirmou que a criança nasce da junção do osso da mulher com o osso do homem, além de comparar o feto a um rato. Explicar sobre a forma como o bebê é concebido requer, dos educadores, disponibilidade e naturalidade para tratar de experiências relacionadas ao ato sexual. A concepção equivocada e até fantasiosa que L. possuía sobre a gestação, denunciava uma provável lacuna no processo de educação sexual a ela dispensado. Ficou bastante evidente, nas falas das mulheres que fizeram parte das oficinas, a falta de informação adequada sobre as mudanças fisiológicas, próprias da puberdade e adolescência, tal como a menstruação. Os relatos dessas mulheres permitiu também comprovar o que afirmam muitos estudiosos, a exemplo de Lília Moreira (1995), Sadao Omote (1993) e Maria Helena Sprovieri e Francisco Assumpção Jr. (2005), sobre questões referentes à sexualidade das pessoas com deficiência mental. Não obstante pais, mães e professoras(es) julgarem relevante um trabalho de educação sexual e reconhecerem seu papel de educadores sexuais, na maioria das vezes, eles se eximem de assumir este papel, delegando a outras instâncias sociais esta função. Recorrem a parentes próximos, aos médicos, a psicólogos, dentre outros, por não se sentirem habilitados e/ou confortáveis para tratar deste tema, como ilustra um trecho da fala de L. Quando questionada se alguém havia conversado com ela sobre menstruação, respondeu que foi o médico que lhe falou sobre menstruação, mas não se lembrava o que ele dissera a este respeito:

Médico. Não lembro direito não. Quem me ensinou direito foi minha madrinha. Ah não lembro direito isso não [...] Sua mãe teve filho não teve? Então, quando teve filho não sai sangue? Espie só. Vou abrir sua barriga e vai tirar seu filho, aí vai sair sangue, depois sangue fica aqui dentro, fica aqui por baixo [aponta para a barriga]. Sangue tá menstruada né? Só.

As três participantes não souberam explicar porque e como a menstruação ocorria, embora vivenciassem este fenômeno há alguns anos. Constatou-se uma falta de informação, visto que todas elas afirmaram que nenhuma pessoa da família, da escola ou amigos havia lhe explicado sobre as razões que levam uma mulher a menstruar. Apenas L. estabeleceu relação entre a menstruação e a gravidez, afirmando:

Quando entra ratinho pequeno é desse jeitinho. Tira um braço e uma perna. Primeiro sai a cabeça. Tá saindo sangue de mulher. Quando tá menstruada fica saindo sangue dentro da barriga.

Ainda que tenha associado estes dois eventos, gravidez e menstruação, sua noção sobre ambos mostrou-se distorcida. Em outro momento, foi possível comprovar que L. percebia a menstruação como doença, pois ela tinha muitas cólicas e se referia a este fenômeno da seguinte maneira:

Nem te conto! Menstruar é muito chato. Choro, choro não pára. Muito, muito forte, dói aqui por dentro e dói por fora. Tomo remédio. Minha mãe passa ferro num pano e bota minha barriga.

Este relato permite constatar também, a reprodução e perpetuação de comportamentos aprendidos que nem sempre conduzem à resolução do problema, a exemplo da ação de passar ferro em um pedaço de tecido para melhorar cólicas do período menstrual. Assim como os comportamentos, os valores e atitudes em termos de sexualidade também são reproduzidos e perpetuados ao longo da história da humanidade, ainda que tenham pouco ou nenhum fundamento, como ressalta Tereza Fagundes (2005). Apenas L. demonstrou conhecer alguns métodos contraceptivos e sua função, entretanto não soube explicar de que forma o homem usava a camisinha, como comprova seu depoimento.

L. – Pra não ficar grávida tem que evitar. Usar camisinha, tomar pílula. O homem não tem osso? Mulher não tem osso? Aí nasce um ratinho. Aqui