





Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Uma análise da obra de padre antónio vieira, um religioso português do século xvii, cujo sermão 'pelo bom sucesso das armas de portugal contra as de holanda' é analisado por alcir pécora. O texto discute a importância da guerra na visão de vieira para alcançar a paz universal, bem como sua visão de um quinto império que instauraria a paz eterna na terra.
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
1 / 9
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
(Universidade de Coimbra) Em Janeiro de 1650 estava D. Francisco Manuel de Melo preso na Torre de Belém, em situação de ânimo e de saúde bem pouco propícia a coisas de folgar! No entanto, em carta de 25 daquele mês, dirigida a D. João Pereira, sobre ʺcausas (ou cousas ?) familiaresʺ, dizia‑lhe, a propó‑ sito do interesse que certa mulher tinha em fazer entrar ao serviço do destinatário um jovem seu protegido: ʺTem tanto amor a V. M., a boa da mulher, que, já que o não vai logo servir, quer que este moço lhe vá lá tomar lugar em casa de V. M., como quem manda lançar tapete de madrugada em S. Roque para ouvir o Padre Vieiraʺ^1. Não é abundante a correspondência com esta personagem, para mim ainda desconhecida, pois apenas sei de duas cartas que o infeliz prisioneiro da Torre Velha lhe dirigiu: esta, e outra, de 9 daquele mesmo mês. Seja como for, a frase é por demais significativa da popularidade que o famoso Jesuíta alcançara em Lisboa, desde que, ali chegado da Bahia, em fins de Abril de 1641, subira pela primeira vez ao púlpito da Capela Real no primeiro dia de Janeiro de 1642, para pregar o célebre
(^1) Cartas familiares. Prefácio e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980, p. 330.
Aníbal Pinto de Castro 450 Sermão dos bons anos , logo objecto de numerosas edições avulsas^2. Da sua intensa actividade concionatória durante aqueles quase dez anos, apesar das várias e demoradas ausências motivadas pelas missões diplomáticas de que se vira encarregado em França, na Holanda e em Roma, dá conta a excelente cronologia que para ela estabeleceu a minha saudosa e sábia colega, Maria Margarida Vieira Mendes^3. Seja como for, a sua actividade concionatória, então e depois, não se limitou ao campo religioso, do ensino das verdades da Fé ou da formação moral dos ouvintes segundo os ditames dessa vivência religiosa, até porque ela se via, com escandalosa frequência, postergada por toda uma sociedade em crise. Estão ainda por estudar entre nós os aspectos sócio‑culturais da actividade oratória na vida da sociedade luso‑brasileira do Barroco, e não é esta por certo a oportunidade para traçar a metodologia e os caminhos dessa pesquisa, aliás urgente, como tantas outras entre nós. Mas pode, sem receio de grande contradita, afirmar‑se que o sermão constituía parte indispensável de todas as manifestações que marcavam os vários passos do homem ao longo da vida terrena. Como já lembrei noutro lugar, os sermões eram parte integrante das cerimónias de profissão monástica, sobretudo de freiras, de sufrágios, entradas ou aniversários de pessoas de alta jerarquia, em especial de Reis e Príncipes, de preces ou festas gratulatórias por nascimentos, casamentos e outras ocasiões jubilares, públicas ou privadas, bem como por calamidades, a maior das quais era então determinada pelas vicissitudes da guerra da Restauração. E o púlpito convertia‑se, com frequente facilidade, em tribuna de opinião política e social, em flagrante antecipação ao papel dos modernos meios de comunicação jornalística. Deste modo a pregação transformara‑se pouco a pouco em manifestação mundana, onde todos, do plebeu ao nobre, da alcoviteira à dama, do frade ao cavalariço e ao soldado, acorriam a ouvir com deleite os jogos verbais e gestuais do pregador^4.
(^2) Cf. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil , vol. IX. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1949, pp. 203‑204. (^3) Vide A oratória barroca de Vieira. Lisboa, Editorial Caminho, 1989, pp. 548‑ ‑561. (^4) Cf. Aníbal Pinto de Castro, Retórica e teorização literária em Portugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, pp. 84‑85.
Aníbal Pinto de Castro 452 Quando, criança ainda, Vieira chega à Bahia, já os europeus e autóctones lutavam com denodo pela recuperação do território daquele Estado que, com os do Maranhão, da Paraíba e de Pernambuco, tinha progressivamente caído ou ia caindo sob as armas dos Holandeses. Em 1624 sofrera os temores do cerco e do saque da cidade, levados a cabo sob o comando de Jacob Willekens; depois, em 1638, seguira angustiado o avanço das tropas neerlandesas comandadas por Maurício de Nassau, nas praias de Pernambuco, e vibrara com a recuperação da Cidade do Salvador, cujo cerco vivera, dando dele um quadro magnífico, na carta ânua terminada a 25 de Setembro de 1626^7 , ou evocando‑o, ainda com maior veemência, em alguns sermões onde estão bem presentes traços dessa experiência, como o de Santo António , que pregou na Bahia, na igreja da sua invocação, “havendo os Holandeses levantado o sítio que tinham posto à cidade e assentado os seus quartéis e baterias em frente da mesma igreja”, ou o que em Maio ou Junho de 1640, pregou na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, “pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda”, em cerimónia que encerrava 15 dias de preces públicas por aquela mesma intenção. Como é sabido, em Abril de 1641, aporta Vieira ao Reino, em Peniche, para, com D. Fernando de Mascarenhas e o Padre Simão de Vasconcelos, trazerem a D. João IV a vassalagem dos Estados do Norte do Brasil. E, como não podia deixar de ser, logo se inteirou das primeiras vicissitudes da Guerra da Restauração que iria seguir, muitas vezes como activo interveniente diplomático, até que, em Janeiro de 1668 a paz se alcançou, com a Espanha de Filipe IV. Mas a própria actividade civilizadora da colonização, que o Jesuíta bem conhecera graças à sua experiência de missionário, não estava isenta da actividade bélica, pois os missionários, nas entradas que faziam pelo sertão brasílico, tinham muitas vezes de recorrer à acção das armas, para se defenderam, para “reduzirem” as tribos de índios que queriam converter ou até para alimentarem a voracidade dos colonos que pretendiam por esse meio violento recrutar mão de obra barata para a exploração cúpida dos seus canaviais. Significa isto que toda a sua vida decorreu em situações de conflito, por vezes violento, travado quantas vezes com o auxílio das armas do
(^7) Leiam‑se as pp. 13‑51 do vol. I das Cartas. Coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo. Lisboa, Imprensa Nacional, 1925.
Das incertezas da guerra à visão profética da paz na obra de Padre António Vieira 453 raciocínio e da palavra, contra aqueles mesmos dos seus compatriotas que, surdos às suas invectivas e fechados à sua doutrina, o obrigavam a procurar auditórios mais atentos nos peixes do mar! Mas Vieira pertencia a uma Ordem Religiosa que, embora concebida como uma espécie de milícia de Cristo, pugnava, apenas apoiada nas armas do espírito, pela batalha travada em ordem à instauração do Reino de Cristo na Terra, não lhe sendo lícito, por isso, apostar no aço das que matavam e feriam. E de novo se punha a questão ética, filosófica e teológica do conflito entre a tranquila justiça da paz e a cruel injustiça da guerra! Era a discutida questão do bellum justum que, sobretudo no que dizia respeito às conquistas americanas, Vieira bem conhecia através das posições de Fr. Bartolomé de las Casas no De Regia Potestate (Sevilha, 1525), e da controvérsia do autor com Fr. Bartolomé Carranza de Miranda^8 , sem a ignorar, mesmo quando a aplicava à guerra da Restauração, como se pode ver no Parecer sobre o modo se fazer a guerra a Castela , elaborado a 10 de Janeiro de 1644^9. Além de que importa não esquecer que, tanto nas ideias como nas posições assumidas em muitas das suas intervenções públicas, nem sempre a sua virtude principal era a coerência, ou melhor, era frequente que mudasse de opinião segundo as circunstâncias do momento. Tal não significa todavia que, no seu pensamento, como na sua palavra, a guerra não estivesse sempre ao serviço da paz, na linha do velho aforismo latino si vis pacem para bellum. Ou, por outro lado, que a verdadeira paz que procurava e ensinava aos seus ouvintes não fosse a paz interior, directamente nascida da tranquilidade da consciência moral e da obediência religiosa aos mandamentos divinos. Por todas estas razões do contexto da sua época e do foro da sua própria vida de permanente homo viator , pelas selvas brasílicas ou nos palácios dos grandes do Mundo, não será, pois, de admirar que a guerra seja um tema
(^8) Vejam‑se, em especial, De regia potestate: o derecho de autodeterminación. Ed. Crítica bilingüe por Luciano Pereña (et alii) Madrid, C. S. I. C.,1969; e Barthélémy de las Casas: l’ Évangile et la force. Présentation, choix de texts et trad. par Marianne Mahn‑Lot. Paris, Cerf. 1964. E ainda J. I. Tellechea Idígoras, Las Casas y Carranza. Fe y utopia , in “Revista de Occidente”, n.º 141, 1974, pp. 403‑427. (^9) Veja‑se o respectivo texto em Obras várias do Padre António Vieira. ‑ Lisboa: Edits., J.M.C. Seabra & T. Q. Antunes, 1856‑1857, vol. II.
Das incertezas da guerra à visão profética da paz na obra de Padre António Vieira 455 próprio sangue; Holanda defenderá a verdade de Vossos Sacramentos, e a autoridade da Igreja Romana; Holanda edificará templos, Holanda levantará altares, Holanda consagrará sacerdotes e oferecerá o sacrifício de Vosso Santíssimo Corpo; Holanda, enfim, Vos servirá e venerará tão reli‑ giosamente como em Amsterdão, Midelburgo e Flissinga, e em todas as colónias daquele frio e alagado inferno, se está fazendo todos os dias”^10. Se do Brasil passarmos ao Reino, fácil se torna concluir que a visão vieiriana da guerra, centrada embora na convicção de que a Restauração era obra de Deus, se enquadrava perfeitamente no conspecto mais vasto da Europa, toda ela envolvida ainda na Guerra dos Trinta Anos. Veja‑se a comprová‑lo este passo do Sermão pelo bom sucesso de nossas armas, tendo el‑rei D. João o IV passado a além‑Tejo , pregado na Capela Real em 1645, também perante o Santíssimo Sacramento exposto: “Oh, que grande peso de consequências se abala hoje com o nosso exército! O respeito dos inimigos, a inclinação dos neutrais, a firmeza dos aliados, tudo isto está hoje tremulando nas nossas bandeiras: Spectaculum facti sumus mundo : a batalha será nos campos de Badajoz; o sucesso está suspendendo os olhos e as atenções de todo o mundo. Roma, Holanda, Castela, França, todos estão à mira com a mesma atenção, posto que com intentos diversos. Roma, se há‑de receber; Holanda, se há‑de quebrar; Castela, se há‑de desistir; e até França, em cujo amor e firmeza não pode haver dúvida, está suspensa com os sobressaltos de amiga e interessada, que ainda que não façam mudança no coração, causam alteração no cuidado. A Dieta de Alemanha não é a que menos observa este sucesso, para fundar os respeitos de suas resoluções, que por mais que o nosso direito seja tão evidente, e a nossa causa tão justa, os reinos, não os pesa a justiça na balança, mede‑os na espada”^11. A guerra de Portugal volvia‑se obra de Deus: Os soldados e capitães que defendiam a terra portuguesa agiam em cumprimento do pacto que Deus estabelecera com eles e só daquele “Divino Escudo que levavam dentro do peito esperavam a fortaleza e o valor. Eram soldados de Cristo e d’Ele era o Reino por que pelejavam^12!
(^10) Sermões , ed. cit., vol. XIV, pp. 309‑312. (^11) Ib., pp. 330‑331. (^12) Ib., p. 356.
Aníbal Pinto de Castro 456 À medida que se aproximava o fim das hostilidades, nem por isso Vieira deixava de dar os seus alvitres para a manutenção e reforço dos meios da guerra, sobretudo através da aturada correspondência com algumas das figuras mais em evidência no palco da política portuguesa, como D. Teodósio de Melo, irmão do Duque de Cadaval, D. Rodrigo de Meneses e Duarte Ribeiro de Macedo^13 ; e fazia‑o por vezes com tal acerto que parecia para isso trocar a humilde roupeta do Jesuíta pela armadura de algum general investido no comando de tropas. Assim, em carta a D. Teodósio de Melo enviada de Coimbra, a 26 de Junho de 1665, escrevia: “Ainda estamos em Junho, e há dois meses para a campanha do mar, e não me persuado que haja de baldar o inimigo um tão grande empenho. Agora é que eu o havia de começar, e fazer maior e melhor exército; e este é o que devia fazer a boa paz, e depois de boa guerra, e divertir a do mar com a terra, prevenindo mui bem as costas, principalmente a do Algarve...”^14 Esta preocupação de um conflito alargado a toda a Europa vai encontrar um excelente posto de observação durante a longa estadia que fez em Roma, entre 1669 e 1675, como se pode ver pela copiosíssima correspondência que troca com aquelas figuras e outras como os Marqueses de Gouveia e das Minas, que lhe assegurava um domínio perfeito de toda a diplomacia do tempo nos pontos capitais da Europa que mais interessavam à política portuguesa: Paris, Madrid e Londres. Fundando embora a sua visão da guerra na luta que, na História Sagrada, levara o Povo Escolhido a defrontar, de armas na mão e com o auxílio divino, os seus inimigos, Vieira apontava já claramente para a sua visionária concepção do Quinto Império que a História da Futuro havia de estabelecer na terra sob o Primado do Papa, Vigário de Cristo, e com o apoio terreno do Rei de Portugal, numa paz eterna de concórdia e de amor. Vemos assim que, sem rejeitar a guerra, Vieira a considera um mal necessário e apenas defensável para alcançar a paz universal. Mas para atingir essa meta tornava‑se imprescindível que a paz entre os povos não se limitasse a uma garantia baseada na maior força das armas. Tinha igualmente de assentar, e com não menor solidez, numa
(^13) Veja‑se, a propósito deste último, Ana Maria Homem Leal de Faria, Duarte Ribeiro de Macedo, um diplomata moderno. 1618‑1680. Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros. 2005, em especial a Parte III, pp. 505‑780. (^14) Cartas , vol. II, p. 183.