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Uma pesquisa teórica sobre a perspectiva intercultural no ensino de artes visuais, articulando conceitos do multiculturalismo e do ensino de artes. O texto discute a consolidação da multi/interculturalidade como um princípio orientador do ensino de artes, baseado em referências de autores como rodrigues (2014) e macedo (2013). O documento também explora a definição de zordan (2010) do ensino de artes visuais como um território disciplinar desfronteirado e mutante. Além disso, ele discute a importância da interculturalidade no ensino de artes visuais no contexto da história da arte e da estética, e a relação entre arte e cultura no século xxi.
Tipologia: Esquemas
Compartilhado em 07/11/2022
4.5
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Este capítulo está organizado em duas partes: os eixos teóricos privilegiados e a perspectiva metodológica.
2.1. Eixos teóricos O quadro teórico desse trabalho tem o propósito de pesquisar sobre a perspectiva intercultural no ensino de Artes Visuais e para tanto ele articula conceitos dos campos do multiculturalismo e do ensino de artes. Os seus pontos nodais são: a interculturalidade crítica, a ecologia de saberes, o ensino intercultural de Artes Visuais e a arte pós-autônoma. A sua proposta consiste em cruzar as discussões sobre a educação intercultural crítica com aquelas relativas ao ensino de artes pós-modernista a fim de constituir um olhar sobre o ensino intercultural crítico de Artes Visuais.
2.1.1. Interculturalidade crítica Tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande músico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana. (Paulo Freire, 1980, p.109) Intolerância, racismo, machismo, xenofobia, exclusão e desigualdades de toda ordem (econômicas, políticas, sociais, raciais, sexuais, gênero, culturais, religiosas etc.) são, infelizmente, fenômenos que se multiplicam em tempos de globalização e que não afetam do mesmo modo aos diferentes grupos sociais existentes nas sociedades contemporâneas. Eles são ingredientes dos confrontos explosivos que transtornam a vida em sociedade e tornam cada vez maior a necessidade de aprendermos a conviver articulando igualdade e diferença (CANDAU, 1994). O tema do multiculturalismo emergiu com os conflitos étnicos e/ou raciais nos EUA e países da Europa, no início da segunda metade do século XX, e alcançou outras dimensões: religião, idade, gênero, orientação sexual, classe social. O campo teórico e político internacional sobre essa temática foi conformado por esses conflitos culturais e por questões envolvendo processos de emigração/imigração, a emergência das culturas de minorias e suas reivindicações, a criação da União Europeia e seu impacto sobre culturas
nacionais e regionais (BESALÚ, CAMPANI, PALAUDÁRIAS, 1998 Apud CANDAU, 2002). No campo educacional, esse tema dialoga com a concepção antropológica de educação e cultura e abrange processos formais e não formais por meio dos quais a cultura é transmitida, sendo a educação escolar apenas um desses processos. Esse conceito antropológico, por exemplo, inaugura a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Nº 9.394/1996) onde, a despeito de ser uma lei dirigida à educação escolar, se reconhece que: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (TÍTULO I/Da Educação) Os debates, análises e produção teórica em torno do multiculturalismo compreendem concepções que variam quanto a sua capacidade de promover ou de obstaculizar os processos de construção da cidadania dos grupos cultural e racialmente diversificados do padrão monocultural. No campo da educação, ele inclui tanto o olhar da diversidade cultural pelo exotismo e pelo folclore, passando por visões de assimilação cultural, até perspectivas mais críticas de desafio a estereótipos e a processos de construção das diferenças. Essa variação de sentidos enseja inúmeras concepções e vertentes que foram estudadas e discriminadas de diferentes formas nos EUA (BANKS, 1994, 1999; BANKS, BANKS, 1997; MCLAREN, 1997, 1998, 2000), Europa (AGUADO ONDINA, 1991; FORQUIN, 1993, 2000; PINA, 1997, 1998; JORDÁN,1996; SACRISTÁN, 1995; SEDANO, 1997) e América Latina (CANDAU, 1995,1997, 1998, 2000, 2002, 2009, 2011, 2013, 2014, 2015, 2016; CANEN, 2002, 2007, 2008; CANEN, CANEN, 2005; FLEURI, 2001, 2003, 2006; FLEURI, BITTENCOURT, SCHUCMAN, 2002; GONÇALVES, 1998; TUBINO, 2005; WALSH, 2005, 2009, 2011). Sobre as diferentes propostas que articulam educação e diversidade cultural, importa destacar que nos países de língua inglesa se privilegia o termo multiculturalismo e na América Latina o termo interculturalidade é o usual. No Brasil, o termo pluralidade cultural tem sido o mais utilizado oficialmente, conforme denominação de um dos temas transversais proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997).
relativização, o questionamento e a desestabilização da visão etnocêntrica dos conteúdos de Artes Visuais. Esses dados levaram Rodrigues ao seguinte entendimento: (...) os sentidos enunciados em torno da multiculturalidade apontam para duas noções da diferença: uma que a toma de forma horizontal, equalizada, apontando para um processo de naturalização e fixação de identidades; outra que aponta para a alteridade em um sentido mais fluido, não determinado, lança um olhar provisório e sempre aberto a outras possibilidades. Em torno da noção de interculturalidade ficaram explícitas as preocupações com as relações hierárquicas, de desigualdade e contradições, destacando a dimensão transformadora que a interculturalidade pode acionar, ao problematizar e desconstruir dicotomias. Desse modo, afirmo que, embora possam estar muito próximas nos textos analisados, multiculturalidade e interculturalidade operam com significações distintas da diferença. Defendo que quando se fala em multiculturalidade são, geralmente, articuladas noções de diversidade. Essas noções, em si, representam rupturas, reformulações, ressignificações, no entanto, tendem a silenciar hierarquias e buscam reconhecer e valorizar as diferenças sem problematizar as relações de poder. Por outro lado, quando se fala em interculturalidade, ainda que em alguns casos se naturalizem as construções culturais que estão em interrelação ou diálogo, a diferença é abordada a partir dos campos de força que as atravessam (2013, p. 107). Segundo essa autora, a unanimidade de sentido existente em torno das enunciações sobre interculturalidade refere-se à interação genérica entre as diferentes construções culturais sem precisar modos sobre como acontecem ou podem acontecer as inter-relações desse tipo. A questão do diálogo, por exemplo, pode apontar para diferentes caminhos, sendo possível dialogar para a transformação ou manutenção dessas relações. Ou seja, “é possível ‘dialogar’ sem que se saia do lugar” (2013, p. 105). Isso acontece quando há processos de naturalização (de culturas e diferenças) e não se discute as relações de poder que produzem e sustentam preconceitos, discriminações e estereótipos entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes. Diálogos interculturais desse tipo, realizados em nome do desenvolvimento de competências em vários códigos culturais, que priorizam o reconhecimento das semelhanças entre grupos culturais distintos, podem significar a diferença como um complicador do diálogo. Essa concepção se aproxima da perspectiva assimilacionista (CANDAU, 2008). Dessa forma, considerando as polissemias presentes nas expressões multiculturalismo e interculturalidade, e ciente da possibilidade de diversas leituras e múltiplos referenciais teóricos existentes para penetrar nessa problemática (CANDAU; SACAVINO, 2010a), passo a situar esse estudo em relação com as três principais perspectivas presentes na base de diversas
proposições educacionais que relacionam multiculturalismo e conhecimentos escolares a partir da tensão universalismo-relativismo cultural, especialmente relevante para os debates sobre currículo. Essa tensão envolve diferentes compreensões sobre os conhecimentos escolares, usualmente tomados como valores universais. Na visão adotada nesse estudo contesta-se o entendimento de que são neutros e inquestionáveis, sublinhando-se que eles têm ancoragem histórica na Europa ocidental. As três perspectivas são definidas por Candau (2009) da seguinte forma: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural e o multiculturalismo interativo. Na perspectiva assimilacionista propõe-se uma política de universalização da escolarização sem que se coloque em questão o caráter monocultural presente em sua dinâmica, incluindo-se os conteúdos do currículo. Na perspectiva do multiculturalismo diferencialista tem-se uma concepção estática e essencialista da formação das identidades culturais e a negação da universalidade dos saberes e valores afirmados na escola. Na perspectiva do multiculturalismo aberto e interativo são privilegiados os conhecimentos próprios de cada grupo sociocultural e a questão da seleção de conhecimentos deve ser mantida em tensão, sem ceder ao relativismo absoluto (propício à guetificação e à negação da construção coletiva entre os/as diferentes) e sem pretender definições pré-estabelecidas e transcendentais. Busca construções dinâmicas baseadas em negociações culturais permanentes sobre conhecimentos e valores transculturais. O multiculturalismo aberto e interativo busca visibilizar o atravessamento das relações culturais por mecanismos de poder (hierarquizações, preconceitos e discriminações) e superar a contraposição entre universalismo e relativismo para afirmar a pluralidade de saberes presentes na dinâmica escolar, valorizar a hibridização cultural proveniente da convivência de diferentes grupos socioculturais e romper com visões essencialistas das culturas e identidades culturais (concebidas em contínuo processo de construção, desestabilização e reconstrução). Enfim, uma visão direcionada a um caminho rumo à “construção de sociedades democráticas e inclusivas, que articulem políticas de igualdade com políticas de identidade.” (idem, p.58). Nesse estudo assumo a concepção de multiculturalismo aberto e interativo considerando-a pela denominação interculturalidade. Assim, diferencio
social, da discriminação cultural e dos dispositivos e padrões de poder que mantém a desigualdade (WALSH, 2009a, p. 21). A autora compreende a interculturalidade crítica como uma alternativa à globalização neoliberal e à racionalidade europeia. Ela defende o enfoque e a prática dessa concepção a partir da problematização da colonialidade do poder, do seu padrão de racialização e da diferença colonial (e não simplesmente cultural) para a construção da interatividade aberta e democrática entre culturas que foram historicamente marcadas diferentemente pelo poder instituído do capitalismo mundial - moderno, colonial, patriarcal e eurocêntrico. A interculturalidade crítica questiona as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história entre diferentes grupos socioculturais, étnico- raciais, de gênero, orientação sexual, entre outros. Parte da afirmação de que a interculturalidade aponta para a construção de sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da democracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadeiramente igualitárias entre os diferentes grupos socioculturais. Por isso, propõe empoderar aqueles que foram historicamente inferiorizados. Assim, ao contrário de funcionar para manutenção da ordem estabelecida, essa concepção se posiciona pela transformação radical das estruturas, instituições e relações existentes (questionamento do poder instituído pelo capitalismo mundial) pela via da in-surgência, re-existência e o re-viver a partir daqueles/as que sofreram a submissão e a subalternização histórica e que buscam alternativa à globalização neoliberal e à racionalidade europeia, pensando projetos a partir dos movimentos sociais (surgidos a partir de pessoas que sofreram a submissão e subalternização histórica). Dessa forma, Catherine Walsh (2009a) investe contra a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização epistêmica do Outro e a promoção da negação e do esquecimento de processos históricos não europeus. Segundo ela: Argumentar não pela simples relação entre grupos, práticas ou pensamentos culturais, pela incorporação dos tradicionalmente excluídos dentro das estruturas (educativas, disciplinares ou de pensamento) existentes, ou somente pela criação de programas “especiais” que permitem que a educação “normal” e “universal” siga perpetuando práticas e pensamentos racializados e excludentes. É assinalar a necessidade de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que diferentemente posicionam grupos, práticas e pensamentos dentro de uma ordem
e lógica que, ao mesmo tempo e ainda, é racial, moderno-ocidental e colonial. Uma ordem em que todos fomos, de uma maneira ou de outra, participantes ( Ibidem , p. 24). Em síntese, a sua visão parte de uma perspectiva histórica ampla para questionar e propor a desconstrução da educação monocultural, verificando as suas implicações com a marginalização sócio-política e cultural de populações indígenas e afro-descendentes na América, regida pela lógica da colonialidade, desde instituições imperiais diretas até as instituições republicanas, nos séculos XX e XXI. A visão de interculturalidade crítica de Walsh encontra-se articulada com o pensamento decolonialista^3. As teorizações do Grupo Modernidade/Colonialidade se assentam na visão da relação intrínseca entre modernidade e colonialidade em que esta não é mero efeito daquela^4. A colonialidade é a face oculta, necessária e indissociavelmente constitutiva da modernidade (Mignolo, 2010). Por estar intrinsecamente associada à experiência colonial, a modernidade não é capaz de apagá-la e, portanto, não existe modernidade sem colonialidade. Dessa forma, não poderia haver uma economia-mundo capitalista sem as Américas (Quijano e Wallerstein, 1992). Assim, com a invenção da América criou-se a primeira periferia do sistema-mundo europeu/euro-norte- americanomoderno/capitalista/colonial/patriarcal (BALLESTRIN, 2013). O conceito de colonialidade do poder foi desenvolvido principalmente pelo peruano Aníbal Quijano (2000; 2005). Parte da constatação de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo e que formas coloniais de dominação continuam
(^3) O termo “decolonização” (com ou sem hífen) e não “descolonização”, segundo sugestão feita pela estadunidense Catherine Walsh, visa marcar forma de pensar distinta daquela pertencente ao processo histórico de descolonização dos povos africanos e asiáticos, via libertação nacional durante a Guerra Fria. Refere-se à distinção entre colonização e colonialidade. 4 Seus/Suas principais autores/as são: Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Anibal Quijano, Immanuell Wallerstein, Ramon Grosfoguel e Agustin Lao-Montes e Fernando Coronil. Em 2000 foi lançada uma das publicações coletivas mais importantes do Grupo M/C: La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Na genealogia de pensamento do Grupo M/C encontra-se a Teologia da Libertação / 1960 e 1970; os debates latino-americanos sobre noções como filosofia da libertação e uma ciência social autônoma; a teoria da dependência; os debates na América Latina sobre a modernidade e pós-modernidade dos anos 1980, seguidos pelas discussões sobre hibridismo na antropologia, e comunicação nos estudos culturais nos anos
Além da produção de Santos^5 , conto com a contribuição de Chauí (2014) e Candau (2015) e Streck (2013) para discutir esse conceito. Várias são as inter-relações e entrelaçamentos da proposição de Ecologia de Saberes (doravante grafada como ecologia de saberes ou ES) com outros conceitos desse autor, tal como Epistemologias do Sul, Justiça Cognitiva (doravante grafada como justiça cognitiva), Conhecimento-Emancipação, Tradução Intercultural (doravante grafada como tradução intercultural), Hermenêutica Diatópica e, principalmente, a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências. A ES baseia-se, primeiramente, na consciência da incompletude do saber com a negação da ideia de totalidade existente numa forma específica de conhecimento (produção da razão metonímica^6 ). Essa consciência consiste na compreensão de que todas as formas de conhecer o mundo são definitivamente incompletas e que não existe a possibilidade de se tornarem completas. A aproximação e o diálogo entre diferentes saberes e culturas – a ecologia de saberes -, ao contrário de possibilitar a completude de saberes, propicia o aprofundamento da consciência de quão incompleta é cada forma de conhecimento. Em segundo lugar, a ES baseia-se na promoção da “conversa do mundo” (SANTOS, 2009)^7 de maneira mais ampla, rica e horizontal do que a compreensão ocidental do mundo (SANTOS, 2007, p. 20), trazendo-se para esse diálogo formas de conhecimento que foram ocultadas pelas Epistemologias do Norte (o nortecentrismo). Essas epistemologias têm por paradigma o modelo científico clássico que pressupõe a busca da verdade como representação do real pela separação entre sujeito e objeto, relacionando objetividade com neutralidade.
(^5) Foram consideradas também para esse trabalho as “Aulas Magistrais” de Boaventura Sousa Santos (2009) “Porquê Epistemologias do Sul”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gRpkCOiv4UIe (Último acesso em 24 agosto de 2016). “O que são e para que servem os diálogos Sul-Sul?”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pyypI-moUbM 6. (Último acesso em 23 agosto de 2016). A razão metonímica (de acordo com a figura de linguagem que toma a parte pelo todo) “se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima” (SANTOS, 2006, p. 95-96). Nessa racionalidade estreita prevalece a ideia de totalidade homogênea e unitária, em que uma única lógica organiza o movimento do todo e das partes operando pela simetria dicotômica (por exemplo: homem/mulher, norte/sul, branco/negro) que oculta diferenças e hierarquias. Esse movimento reducionista contrai o presente ao deixar de fora “muita realidade que não é considerada relevante e que se desp 7 erdiça” (SANTOS, 2007, p. 27). Ver aula de Boaventura Sousa Santos “Porquê Epistemologias do Sul” (2009). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gRpkCOiv4UIe.
Esse é o contexto teórico da ecologia de saberes que busca contribuir para a reinvenção da emancipação social baseado na ideia central de que “não há justiça social global sem justiça cognitiva global, ou seja, sem justiça entre os conhecimentos” (SANTOS, 2007, p. 40). Sua proposição não busca a “descredibilização” das ciências e nem se alinha a posições fundamentalistas “anticiência”, mas investe na desconstrução de sua hegemonia. Ele propõe o uso contra-hegemônico dos conhecimentos científicos a fim de integrá-los “como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês.” ( ibidem , p. 32-33). O seu diagnóstico desse contexto compreende que as Epistemologias do Norte, articuladas pelas três principais fontes de opressão que atuam conjuntamente no mundo desde o início da modernidade - capitalismo, colonialismo e patriarcado -, foram universalizadas no período colonial quando grande parte da população mundial esteve sob o domínio de povos ocidentais (inicialmente por potências europeias imperialistas e, posteriormente, pelos EUA). Esse projeto de tornar universal (transcendental) um localismo (conhecimentos com ancoragem histórica e geográfica específica) foi implementado pela divisão planetária por uma linha abissal em dois universos diferentes: o Norte (portador de visibilidade) e o Sul (portador de “invisibilidade”). Por essa divisão o Sul torna-se inexistente no sentido de existência sem relevância, como “uma alternativa não-crível, como uma alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo (SANTOS, 2007, 28-29). As inexistências são produzidas pela promoção de cinco monoculturas: do saber científico, do tempo linear, da naturalização das diferenças, da escala dominante e do produtivismo capitalista (SANTOS, 2006; 2007). Em contraposição a essa estratégia histórica, as Epistemologias do Sul 8 são produzidas em consideração às relações políticas e culturais excludentes que
(^8) O adjetivo Sul foi pensado inicialmente como um conceito geopolítico. No tempo presente, o termo possui conotação metafórica como um campo de desafios epistêmicos que transcende o entendimento meramente geográfico e envolve um conjunto de países, nações, grupos sociais, movimentos, organizações e populações vitimadas historicamente e, por esse viés, tanto pode incluir aqueles que se localizam no norte geográfico (o Haiti e alguns países do leste europeu, por exemplo) como não compreender outros localizados ao sul (como a Austrália, por exemplo). Deve-se ressaltar que o foco desse conceito não recai tanto sobre os países, mas principalmente
Trata-se de uma forma de agir sobre o Ainda-Não, sobre aquilo que ainda não é, mas se mostra como potência e potencialidade. Essa forma de agir é a ampliação simbólica de, por exemplo, uma pequena ação coletiva, de um pequeno movimento social; a atenção às pistas e aos sinais do que ainda são tendências ou possibilidades existentes no presente como portadores de futuro (SANTOS, 2006). O procedimento da tradução intercultural é proposto pelo autor diante da impossibilidade de uma teoria ou epistemologia geral, destinada a criar inteligibilidade recíproca em meio às relações de saberes plurais, heterogêneos e parciais. Esse procedimento intercultural e intersocial, voltado para criar a inteligibilidade sem destruir a diversidade, visa “traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros” e busca “inteligibilidade sem ‘canibalização’, sem homogeneização” (SANTOS, 2007, p. 39-40). Entretanto, ao refletir sobre formandos e formadores no contexto de sua proposta de tradução, adverte sobre o risco de uma tradução que traia seus propósitos e acabe sendo outra forma de Epistemologia do Norte: Se, realmente, as lutas por novos saberes, por novas epistemologias, são também, uma luta por novos processos de formação do conhecimento, há que se tematizar uma questão que não aparece tematizada em meu trabalho: quem são os formandos e quem são os formadores, ou seja, os sujeitos desse processo. Dentro desse processo, se são os intelectuais, os profissionais ou os técnicos originários da tradição positivista da epistemologia moderna, em primeiro lugar, eles não estarão interessados nisso, e, em segundo lugar, se levados a fazer isso, facilmente subverterão e corromperão o processo. (SANTOS, 2011, p. 28) Nesse sentido, considera crucial suspeitar de movimentos hegemônicos e contra-hegemônicos em processos de ecologia de saberes (como também nos transdisciplinares) e buscar ter clareza sobre as relações de poder que os envolvem “no sentido de submetê-los, obviamente, a um trabalho que me permita saber se estão a serviço de causas de emancipação social ou de regulação”. (idem, p. 22). As ideias de Santos orientam esse estudo que se propõe a buscar pistas, sinais, latências e embriões portadores de possibilidades da emergência de um ensino de artes intercultural crítico e, quiçá, contribuir para a ampliação desse conceito.
2.1.3. Educação intercultural crítica A base teórica dessa proposta de pesquisa vem sendo construída a partir de minha participação no Grupo de Pesquisa sobre Cotidiano Escolar e Cultura(s) –
GECEC 11 que há vinte anos vem trabalhando com a perspectiva da educação intercultural crítica, concebida como teoria e horizonte de sentidos, além de um processo e uma estratégia ética, política e epistêmica que se coloca em confronto à geopolítica hegemônica, monocultural e mono-racional de construção do conhecimento e de distribuição do poder, que se constrói de “baixo para cima” exigindo uma articulação em suas propostas dos direitos de igualdade com os direitos da diferença (VALENTIM, 2014, p. 8). Nesse estudo adoto o conceito de educação intercultural formulado pelo GECEC. Essa formulação se encontra fortemente referenciada no pensamento de Boaventura Sousa Santos e, como veremos a seguir, a ecologia de saberes é um componente fundamental, assim como a noção de justiça cognitiva. A educação intercultural parte da afirmação da diferença como riqueza. Promove processos sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos – individuais e coletivos -, saberes e práticas na perspectiva da afirmação da justiça - social, econômica, cognitiva e cultural, assim como da construção de relações igualitárias entre grupos socioculturais e da democratização da sociedade, através de políticas que articulam direitos da igualdade e da diferença. (CANDAU, 2013, p. 1) Essa definição entrelaça os princípios gerais de questionamento/desconstrução da educação monocultural e promoção da educação intercultural de maneira a envolver os eixos Sujeitos e Atores, Conhecimentos e Saberes, Práticas Pedagógicas e Políticas Públicas, conforme a dinâmica teórica expressa no mapa conceitual abaixo.
Fig. 3 Mapa conceitual da ecologia de saberes na perspectiva da interculturalidade crítica
(^11) O Grupo de Estudos sobre o Cotidiano Escolar e Cultura/s existe desde 1996 com coordenação da Professora Vera Maria Candau e está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica/Rio de Janeiro.
GECEC 2009
InterculturalInterculturalEducaç^ Educaçãoão
LinguagensLinguagens^ MMúúltiplasltiplas
EmpoderamentoEmpoderamento
Para tanto, torna-se necessário problematizar os modos de convivência na escola entre conhecimentos e saberes provenientes de diversas culturas na perspectiva do diálogo, sem com isso visar a eliminação dos conflitos que se apresentam na busca por interações. Segundo Candau: (...) Esta interação pode se dar por confronto ou enriquecimento mútuo, e supõe ampliar a nossa concepção de quais conhecimentos devem ser objeto de atenção, entre confluências e tensões, e ser trabalhados na escola, assumindo-se os possíveis conflitos que emergem da interação entre estes saberes. Trata-se de uma dinâmica fundamental para que sejamos capazes de desenvolver currículos que incorporem referentes de diferentes universos culturais, coerentes com a perspectiva intercultural crítica. Nesta perspectiva, é importante conceber a escola como um “espaço vivo, fluido e de complexo cruzamento de culturas”, como propõe Perez Gomez. (CANDAU, 2015, p. 11-12). Nesse ponto, impõe-se sublinhar a compatibilidade entre a relação horizontal de saberes (em respeito à dignidade e validade epistemológica das diferentes formas de conhecimento) e a adoção de hierarquias concretas e fixas no exercício de práticas de saber concretas (o que torna viável práticas concretas). Isso é diferente de posicionar-se combativamente contra hierarquias e poderes universais e abstratos, historicamente naturalizados e epistemologicamente reduzidos (CHAUÍ, 2013, p. 36). Santos (2007) propõe distinguir a diferença produzida pelas hierarquias colonizadoras de forma que só sejam aceitas aquelas que restem depois que essas hierarquias forem descartadas. A concepção de conhecimento operante na ecologia de saberes é pragmática e preocupada em saber qual o tipo de intervenção cada saber produz. As hierarquias específicas surgem do confronto entre os tipos de intervenção no real a partir de situações concretas, valorando-se complementaridades e contradições entre elas com a prioridade de juízos éticos e políticos sobre os juízos cognitivos. Deve-se mover nesse terreno orientado pelo princípio da precaução que orienta a respeito de decisões sobre formas de intervenção em igualdade de circunstâncias, preferindo-se aquela/s que possibilite/m a maior participação dos grupos sociais envolvidos na concretude da situação (concepção, execução, controle e fruição da intervenção) por meio de “deliberações democráticas sobre perdas e ganhos”. (CHAUÍ, 2013, p. 36). Assim, de acordo com os/as autores/as acima, para a promoção da ecologia dos saberes na escola importa mais a forma como os conhecimentos são produzidos, a partir de uma nova relação entre os diferentes
conhecimentos/saberes e culturas, do que pensar na criação de um novo produto do conhecimento. Novo ele será para essa lógica se produzido sem a hierarquia de saberes hegemonizados historicamente, pois todo esse aparato conceitual se presta à descolonização dos conhecimentos escolares no sentido do questionamento do eurocentrismo contido nos currículos. O foco desse trabalho recai sobre a categoria Saberes e Conhecimentos, sem com isso desconhecer a inter-relação existente entre todas as categorias. Adotar essa ênfase implica em reconhecer que saberes e conhecimentos são termos que podem ser vistos diferenciadamente e que a distinção entre eles pode comportar hierarquizações prévias. Dessa forma, o sentido de conhecimento pode ser constituído por conceitos, ideias e reflexões sistemáticas que guardam vínculos com as diferentes ciências, podendo assim ter uma conotação de universal e científico e, portanto, apresentar um caráter monocultural. Os saberes podem ser compreendidos como produções dos diferentes grupos socioculturais, ligados às suas práticas cotidianas, tradições e visões de mundo, permeados por particulares e marcados pela falta de sistematização. De acordo com a concepção de ecologia de saberes e a compreensão compartilhada no GECEC, importa considerar a existência de diferentes saberes e conhecimentos sem qualquer tentativa de hierarquizá-los, estimular o diálogo entre eles e trabalhar as tensões e conflitos que emergem dos debates epistemológicos.
2.1.4. Ensino de artes contemporâneo e a interculturalidade O objeto de estudo desse trabalho situa-se num campo de ensino existente antes da Segunda Guerra, mas que desde então, com as teorizações sobre a "civilização de imagens", passou a ser chamado de Artes Visuais por ter as imagens como o seu objeto. Zordan (2010) o define como um território disciplinar desfronteirado e mutante, conformado a partir das drásticas variações conceituais determinadas pela diversidade de discursos/enunciados históricos que se fundiram, se sobrepuseram, se aglomeraram e produziram mutações que expressam suas mudanças terminológicas (Belas Artes, Desenho, Artes Aplicadas, Educação Artística, Expressão Plástica, Artes Plásticas, Arte-Educação ou
conquistada 16 na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) Nº 9.394/1996. Essa previsão legal foi decisiva para a emergência de um mercado de trabalho ligado a essa docência, intensificado com a criação e a expansão de agências formadoras, principalmente no ensino superior, que promoveram a profissionalização docente de arte/educadores/as. Com a denominação Ensino da Arte (compreendendo o ensino de Artes Visuais, Música, Dança e Teatro), que substituiu a nomenclatura Educação Artística (consagrada pela LDBEN Nº 5.692/1971, na concepção de atividade educativa), conquistou-se o status de disciplina. Essa conquista representou o reconhecimento das artes como um campo de conhecimentos específicos (objetivos de ensino, conteúdos de estudos, metodologia e sistema de avaliação), com epistemologia própria, com práticas pedagógicas que deveriam introduzir conteúdos relativos à produção artística, história da arte, estética e crítica da arte, destinados à promoção do desenvolvimento cultural dos/as alunos/as. Esse aporte foi construído de acordo com os pressupostos do que se convencionou denominar como ensino de arte pós-modernista que emergiu na Inglaterra e nos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XX, contrapondo-se às tendências anteriores ligadas a teses liberais, positivistas e modernistas. Em busca de alcançar maior compreensão dos processos de ensino- aprendizagem, os partidários dessa tendência educativa operaram um deslocamento em relação à questão de “como se ensina arte” para “como se aprende arte” (ARAÚJO E SILVA, 2007, p. 11). O ensino pós-modernista compreende a diversidade cultural e a interdisciplinaridade (BARBOSA, 1998, 2002; RICHTER, 2002; 2003; EFLAND, 2005; JOGODZINSKI, 2005) como dois vetores estruturantes para a orientação dos currículos e da práxis pedagógica de artes. No Brasil^17 , desde os
(^16) Conforme relato de Silva e Araújo (2010), as bases da estabilidade legal do ensino de arte como disciplina do currículo escolar obrigatório decorreram, principalmente, da mobilização dos/as arte/educadores diante do risco da retirada da obrigatoriedade do ensino de arte nas escolas pela nova LDBEN 9.394/1996 que vinha sendo formulada no início dos anos 1980. Foi do contexto de lutas (política e conceitual), destinadas a tornar a arte uma disciplina curricular obrigatória, que foi conquistada a obrigatoriedade do ensino de artes para toda a Educação Básica e que se encontra em vigor no tempo presente (ARAÚJO e SILVA, 2007, p. 12). 17 A história do ensino das artes no Brasil comporta tradições educativas que surgiram em diferentes momentos históricos, mas que ainda continuam ativas. Elas convivem e disputam por significados na educação escolar a partir de aspirações educacionais muito distintas. São elas: o ensino tradicional, o ensino modernista e o ensino pós-modernista. Araujo e Silva (2011) apresentam a seguinte divisão: ensino da arte pré-moderno (baseado no ensinamento de técnicas
anos 1980, essa tendência vem consolidando os seus princípios orientadores e, no final do século XX, a interdisciplinaridade foi o princípio mais ativo. Sua influência alcançou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), lançados em 1998, que procuraram retirar o caráter da polivalência da disciplina e passaram a considerar a Música, as Artes Visuais, o Teatro e a Dança como linguagens artísticas autônomas dentro do ensino de arte. Segundo Barbosa: Na escola, as artes devem ter seu espaço específico como disciplinas no currículo, embora ensinadas por meio da experiência interdisciplinar, mas também lhes cabe transitar por todo o currículo, enriquecendo a aprendizagem de outros conhecimentos, as disciplinas e as atividades dos estudantes (BARBOSA, 2008, p. 24-25). 18
No século XXI, as questões culturais (também presentes no PCNs-Arte) ganharam centralidade e passaram a caracterizar o ensino de Artes Visuais com propostas voltadas para o entrelaçamento entre arte e cultura; a compreensão dos códigos culturais como códigos de poder; a defesa da apropriação crítica dos códigos dominantes presentes nos artefatos visuais, legitimados ou não como arte; a preocupação com a herança artística e estética dos/as alunos/as; o compromisso com a diversidade cultural (BARBOSA, 1984 1998, 2002, 2005, 2009, 2010; MARTINS, & TOURINHO, 2009, 2010). A Abordagem Triangular, ainda muito ativa no cenário educacional brasileiro, foi a precursora do ensino de artes pós-modernista no país. Ela foi sistematizada por Ana Mae Barbosa, a partir da primeira metade dos anos 1980, tendo como base epistemológica a experiência mexicana das Escuelas al Aire Libre, a proposição inglesa do Critical Studies e o movimento estadunidense Discipline Based Art Education (DBAE). Sua formulação definiu o fazer artístico, a leitura da arte e a contextualização artística como os três eixos do
artísticas), moderno (baseado no desenvolvimento de atividades artísticas e sem compromisso com processos cognitivos) e pós-moderno (baseado no conhecimento). Pontes (2011) inclui o ensino da arte intercultural como uma das vertentes da tradição de ensino da arte pós-moderno no Brasil. 18 Desde a década de 1980, Barbosa vem diferenciando a interdisciplinaridade da polivalência, defendendo que esta consiste na determinação de um/a mesmo/a professor/a várias linguagens artísticas (ensinar Música, Teatro, Dança, Artes Visuais), e inclusive Desenho Geométrico, no EF e EM. A interdisciplinaridade consiste na interação de professores/as com competências específicas para o estabelecimento de diálogos que transcendam os limites dos campos disciplinares. No campo específico de artes propõem-se a intra-disciplinaridade por meio de happening, performance , body art , arte ambiental, arte computacional, instalações , arte na web , etc (BARBOSA, 2008, p. 24)