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Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular.
Tipologia: Esquemas
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Cazuza e Barão Vermelho
Com o mesmo nome de batismo do “sambista” Cartola, Agenor Miranda de Araújo Neto, apelidado “Cazuza”, cresceu no grand monde da música popular brasileira, já que era filho do produtor musical da gravadora Som Livre, João Araújo. O cantor aprendeu desde cedo a dosar o lirismo passional da MPB com o rock, construindo uma identidade com o intercâmbio de gêneros musicais, do modo por ele relatado: Desde pequeno fui tiete de todo o pessoal da MPB. Elis Regina sempre tava lá em casa. Eu acordava de noite para tomar água, e lá estavam na sala o Gil, Caetano, a Gal. A música popular inteira me pegando no colo. Os Novos Baianos acamparam lá em casa, dormiam, iam comer, porque na época não tinham onde ficar, e meu pai estava produzindo o primeiro disco deles. Só fui curtir rock, Janis Joplin, meus ídolos dos Rolling Stones, lá pelos 14 anos, quando dei uma pirada. Mas antes, o máximo que curtia era coisas do tipo ‘Alone again naturally’, água com açúcar. Nessa época aos 14 anos, passei umas férias em Londres com um primo mais ajuizado. E foi mais uma abertura. Então passei a ouvir Janes Joplin o dia inteiro. Quando comecei a compor, acabei misturando tudo isso. Do menino passarinho com vontade de voar (Luiz Vieira) a Janis Joplin. Mas com uma diferença. A dor de cotovelo da MPB, mas dando a volta por cima. (...) O rock da turma nova veio amenizar o lance down , meio negro, de Lupicínio, do pessoal da antiga, que era a falta de esperança no amor. O importante não é cantar a perda, mas o amor. Afinal, como dizia Dalva de Oliveira, ‘o amor é o amor’. (Jornal do Brasil, 26/10/84_._ ) (Cazuza apud Araújo, 1997, p.355). Quando adolescente Cazuza gostava de seguir Carlos Drummond de Andrade pelas ruas de Copacabana para observar o itinerário do poeta mineiro que admirava (Ibid.). No universo da poesia, seu autor preferido era o simbolista Augusto dos Anjos e na prosa Clarice Lispector era sua preferida,^1 principalmente dos livros A descoberta do mundo e Água viva , obra que o cantor e compositor declarou ter lido repetidamente, sempre antes de dormir (Cazuza apud Castello, 2006, p.30). Assim narra Castello:
Uma cena do passado me volta. Alguns anos atrás, em uma entrevista, o roqueiro Cazuza me dissera que Água viva era seu livro de cabeceira. Fazia muito não conseguia dormir sem ler pelos menos alguns parágrafos. Ao fim de cada leitura completa marcava um X na contracapa. Já tinha lido Água viva , ele me garantira, cento e onze vezes. Quantas vezes terá lido antes de morrer, dois ou três anos depois? Jamais saberei. Mas a imagem de Cazuza, belo e rebelde, com seu Água viva aberto, jamais me abandonou. Ela parece agora materializar as ideias imprecisas de Claire. Um livro não é só um livro. Um livro fechado não é nada, mas se o abrimos, e começamos a ler, passamos a ser parte dele. Livros só existem na cabeça do leitor. (Ibid.). Influenciado pela ambiência contracultural dos “anos 60”, o rock foi revelado a Cazuza pela tropicália e pelo “iê- iê- iê” de Roberto Carlos. Apreciador de Luís Melodia, Billie Holiday, Janis Joplin, Novos Baianos, sua formação musical passou tanto pelo rock (de Jimi Hendrix, Rolling Stones e Led Zeppelin), quanto por artistas como Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran e Maysa. Na entrevista que se segue o cantor fala sobre suas influências literárias:
Minhas influências literárias são completamente loucas. Nunca tive método de ler isso ou aquilo. Lia tudo de uma vez misturando Kerouac com Nelson Rodrigues, William Blake com Augusto dos Anjos, Ginsberg com Cassandra Rios, Rimbaud com Fernando Pessoa. Adorava seguir Carlos Drummond de Andrade em seus passeios por Copacabana. Me sentia importante acompanhando os passos daquele Poeta Maior pelas ruas à tarde. Mas meu livro de cabeceira foi sempre A descoberta do mundo , de Clarice Lispector. Adoro acordar e abri-lo em qualquer página. Para mim, sempre funciona mais que o I Ching. As minhas letras têm muito desses ‘bruxos’ todos.^2 Apresentado por Léo Jaime, Cazuza aos vinte quatro anos conheceu o grupo de “rock de garagem” Barão Vermelho, que fazia versões para músicas de bandas de rock estrangeiras, como Led Zeppelin e Rolling Stones. Para Cazuza, Barão Vermelho (nome de um personagem dos quadrinhos Snoopy e Charlie Brown )^3 foi “abrasileirado” pela banda e transformado em um “barão socialista brasileiro” (Cazuza apud Dapieve, 1995, p.66). Logo depois que conheceu a
(^1) Em 1986 Cazuza e Frejat compuseram um blues sobre trecho do livro Água viva , de Clarice Lispector. A canção “O deus venha” foi gravada pelo Barão Vermelho no primeiro LP depois da saída de Cazuza, chamado Declare guerra. (^2) <www.cazuza.com.br> (Consulta em 05/06/09). (^3) “Barão Vermelho” era o apelido do lendário Richthofen, piloto alemão da Primeira Guerra Mundial e foi apropriado por Charles Schultz como um dos personagens de Snoopy.
É interessante notar aqui a relação singular que o BRock desempenhou com o teatro. Como vimos, Evandro Mesquita levou para as apresentações roqueiras sua experiência cênica com o Asdrúbal, assim como também comentamos que dois integrantes do Titãs, Paulo Miklos e Arnaldo Antunes, atuaram em performances da Banda Performática do artista plástico Aguilar. Cazuza, por sua vez, também transpôs para os palcos de rock uma presença cênica desenvolvida em sua experiência com a oficina do grupo Nossa Senhora dos Navegantes, montada por Perfeito Fortuna e Hamilton Vaz Pereira.^6 Tais práticas teatrais trouxeram para os grupos de rock um senso de atuação performática nas apresentações ao vivo das bandas. A propósito da ligação entre música e teatro, Arnaldo Antunes,^7 em entrevista, discorre sobre a ligação do rock com certo tipo de provocação que remete a certas características do Teatro da crueldade de Antonin Artaud.
Idealizador da “crueldade” como técnica teatral, Antonin Artaud propunha uma cultura em ação que buscasse incessantemente sua própria magia através da participação ativa do espectador, explorando a sensibilidade fisiológica do público e reencantando o mundo através do choque e da “crueldade”. 8 Para tal proposta, Artaud visou construir um teatro primitivo que contivesse o drama essencial da linguagem e questionasse o lugar poético do
(^6) No contexto carioca, contribuiu também para esse entrelaçamento entre música e teatro o espaçoconsonância com uma programação intercalada por bandas, peças, apresentações e físico da lona cultural do Circo Voador, onde eram oferecidas aulas de happenings teatro em de poesia. (^7) Arnaldo Antunes. Entrevista concedida a Antônio Abujamra no programa Provocações da TV Cultura. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CHaJl2FPW1k&feature=related Acesso em 20/05/09. (^8) O termo “crueldade” assim é definido por Artaud: “Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapaceque geralmente lhe é atribuído. (...) Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicaçãosinônimo de sangue derramado, de carne martirizada, de inimigo crucificado (...) e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. (...) crueldade A crueldade é não é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não hácrueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que a vida ésempre a morte de alguém. (..) Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas. (Artaud, 2006, p.117-119).
homem moderno na realidade.^9 Dessa forma, Artaud colocava-se radicalmente contra a separação entre vida e arte e defendia um teatro que reunisse corpo e espírito, exigindo que o homem assumisse uma posição de ator, não sendo mero objeto de sua cultura. É nesse sentido provocativo que Arnaldo Antunes compara os shows de rock com a proposta do Teatro da crueldade : Eu acho que tem uma coisa do (Antonin) Artaud do Teatro da crueldade de uma certa potência associada a você provocar o público, de certa forma procurar empatia com uma postura invocada, eu acho que o rock and roll tem um pouco a ver com isso. Bob Dylan fez muito isso, tem aquela coisa de ele fazer canções com violão em uma linha mais folk de música de protesto e de repente ele pegou a guitarra, aquilo era uma agressão. Tinha um show dele em que ele tocava metade do show no violão e depois pegava a guitarra e o público antigo que gostava das canções no violão vaiava no meio do show a segunda parte, era uma provocação. (...) Acho que o rock é uma linguagem de muita urgência, muita intensidade.^10 Cazuza também define o rock de maneira singular, associando o universo roqueiro a uma “batucada” que pode até abranger certas inversões do cotidiano do status quo , de maneira análoga ao carnaval (DaMatta, 1979). Através de uma visão tribal do rock como “vingança dos escravos” e como ethos de uma juventude gauche , ele expõe: O rock é a ideia da eterna juventude. Quando descobri o rock, descobri também que podia desbundar. O rock foi a maneira de eu me impor às pessoas sem ser o ‘gauche’- porque de repente virou moda ser louco (...) E o rock para mim não é só música, é atitude mesmo, é o novo! Quer coisa mais nova que o rock? O rock fervilha é uma coisa que nunca pode parar. O rock não é uma lagoa, é um rio. O rock é a vingança dos escravos. É porque não é para ser ouvido, é para ser dançado, é uma coisa tribal. Rock é simplesmente uma batucada. (Cazuza apud Araújo, 1997, p.361). Combinando rebeldia com boemia, Cazuza assume uma postura combativa em suas entrevistas para a grande mídia, nas quais procura questionar
(^9) Contra a ideia de um público intacto e de uma platéia desinteressada, Artaud defende uma ação contra as representações do real, por uma celebração magnética de imagens que promova a volta da natureza ao teatro e que reencante as palavras poéticas cPropondo a continuidade entre a vida e o teatro, sua definição de vida passa pela concepçãoontra a noção da “arte pela arte”. antiformalista de uma “espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam”. (Ibid.: 8). (^10) Arnaldo Antunes. Entrevista concedida a Antônio Abujamra no programa Provocações da TV Cultura. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CHaJl2FPW1k&feature=related Acesso em 20/05/09.
declara: “Não foi Neruda quem disse: feche os livros e vá viver? Pois fui.” (Cazuza apud Araújo 1997, p.139). Desta forma, Cazuza vai construindo uma auto-representação urbana e noturna: Acho que o poeta é um insatisfeito. Então a noite, a vida noturna, a vida boêmia, da farra, são geralmente frequentadas por pessoas insatisfeitas... Acho que é a própria insatisfação do artista que o leva a ter uma vida desregrada... Você diz que eu sou poeta, mas eu me considero um letrista, gosto de falar que sou letrista, porque eu acho que tem uma distância entre poesia e música popular...(Ibid., p.373). Cazuza afirma que os personagens de suas canções são formados por uma mistura de dois atores do cinema norte-americanos, Humphrey Bogart e James Dean. Assim, o cantor recorre às figuras de Dean e Bogart para criar em suas canções um personagem que conflua com sua própria personalidade, isso é, que contenha Agenor e Cazuza, intrincando arte e vida nesta persona que procura afirmar: O (Humphrey) Bogart e o James Dean são os personagens que eu queria ser, todos os personagens das músicas são um pouco Humphrey Bogart, aquele cara meio amargo, vive de bar em bar, vive na noite. As pessoas da noite são sempre muito solitárias, eu sou uma pessoa da noite. O Humprey Bogart dizia que “a humanidade estava sempre duas doses abaixo”, eu também acho isso. E o James Dean pela beleza física e interior dele e pelo lado revoltado dele. Porque o Humphrey Bogart não era revoltado, era cínico e eu tenho esses dois lados, sou meio revoltado e meio cínico. 12 Assim como Bogart, Cazuza acreditava que “o mundo estaria sempre duas doses abaixo do ideal”, frase que serviu como motivo principal para a letra de “Por quê que a gente é assim?”, canção em que seu lírico pede sempre uma dose a mais. Já a persona de James Dean é evocada por Cazuza através do caráter contraventor e rebelde de Dean, citado também em “Walk on the wild side”, de Lou Reed, música que tematiza o submundo nova-iorquino e que foi
(^12) CAZUZA. Entrevista concedida a Maria Gabriela, em 1989, no programa Cara-Cara, da TV Bandeirantes. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=04GqlPrM2c8&feature=related. (Acesso em 03/07/09).
utilizada como fonte de inspiração para Cazuza na composição de “Só as Mães São Felizes”. 13
Para Roberto Frejat, Cazuza tinha a “carência do artista sofredor, do artista louco. Gostava de alimentar esse fetiche” (Frejat apud Araújo, 1997, p.184). Utilizando procedimentos românticos, a tragicidade de Cazuza é muitas vezes aliviada por um lado mais clownesco que em certos momentos também torna-se presente quando seu lado solar e noir entram em disputa, já que grande parte de suas letras são diretas e sem entrelinhas. Pensando o sujeito e o personage m Cazuza, chama a atenção como ele admira certos poetas transgressores (como Arthur Rimbaud e Allen Ginsberg) e como os utiliza para construir uma persona em moldes que remetem muitas vezes a artifícios românticos.
Em sua “idolatria dos excessos”, o poeta romântico é aquele que, muitas vezes em forma de ironia, lida com ironia a noção de sua própria finitude. A arte para os românticos não é somente representação, mas sim uma “estética ativa” que visa construir sua experiência poética enquanto ação de vida que intervenha no real (Paz, 1984, p.54). Misturando conhecimento e ação, o poeta romântico busca a fusão entre vida e poesia, fazendo um elogio da união entre crítica e paixão, imaginação e ironia. Octavio Paz (1984) afirma que mais do que uma estética e filosofia, o romantismo pode ser definido como um movimento literário que também foi “uma moral, uma erótica e uma política”; “um modo de pensar, sentir, enamorar-se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de morrer” (Ibid., p.83). Assim, Paz descreve : Ao afirmar primazia da inspiração, da paixão e da sensibilidade, o romantismo apagou as fronteiras entre arte e vida: o poema foi uma experiência vital e a vida adquiriu a intensidade da poesia. (Ibid., p.88). Sobre o artista que interliga intrinsecamente arte e vida, Wallace Fowlie (2005) compara as personas de Arthur Rimbaud e Jim Morrison, definindo-os
(^13) Aqui é vale ressaltar que James Dean morreu no auge de sua carreira com 24 anos, tendo estrelado filmes comoBogart, artista “boêmio” de Hollywood, foi protagonista de filmes como Juventude Transviada e Assim caminha a Humanidade. Casablanca Já Humphrey e O Falcão Maltês http://pt.wikipedia.org/wiki/Humphrey_bogart (Consulta em 05/07/09). e morreu de câncer no esôfago no ano de 1957.
Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária - obras-primas entre os 15 e 18 anos. De repente largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura, e cometa se mandou para a Abissínia na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida do mercador árabe, traficando armas, virando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré figurada em nome de seu rei lendário. (...) Enfim, como diz o próprio poeta: ‘Eu é um outro’. A melhor poesia de Rimbaud esteve, porém, em seu gesto final: a recusa do ‘sucesso’, a escolha do ‘fracasso’, a derrota da literatura, inimiga da poesia, para que esta triunfasse .(Ibid.). Já o “roqueiro” Jim Morrison se vestia de preto e era contra o flower power dos hippies (Fowlie, 2005). Quatro meses antes de sua morte o cantor norte-americano se mudou para Paris com o intuito de virar escritor e morar na mesma área em que Baudelaire “vivera como um dândi” (Ibid., p.134). Para Wallace Fowlie, Rimbaud teria influenciado de tal maneira Morrison, que este teria passado a declarar em seus dois últimos anos de vida que quando morresse “preferia ser lembrado como poeta e não cantor de rock” (Ibid., p.12). Assim como Cazuza, Jim Morrison teve formação teatral e, na leitura de Fowlie, construiu seu personagem “libertário e agressivo” no palco atravé s de leituras do Teatro da crueldade de Antonin Artaud e das adaptações do grupo Living Theatre. Para Fowlie, Jim Morrison fazia clara distinção entre “letras” escritas para serem musicadas e “poemas” que não eram concebidos para o plano da música:
Letra, música e a sedução do público são uma forma de arte muito diferente daquela representada pelos poemas surgidos no ocaso de uma longa tradição poética na França, onde um tema universal (liberdade; amor; morte) é revivido sob uma forma fixa que falará individualmente a um leitor e a gerações de leitores que entendem a complexidade da composição e encontram prazer na comparação entre o êxito moderno de um Rimbaud e as conquistas anteriores de um Baudelaire. As letras dos The Doors não podem ser separadas das melodias para as quais foram escritas – feitas, como foram, para ser tocadas durante um período de tempo relativamente curto diante de uma platéia. Essa evidentemente, é a sina das bandas de rock e da cultura pop. (Ibid., p.145-146). Em 1982, o Barão Vermelho lançou seu primeiro LP pela gravadora dirigida pelo pai de Cazuza, a Som Livre. Com produção do crítico musical
Ezequiel Neves, o disco foi intitulado Barão Vermelho e construído sob base melódica de rock e de blues. Integraram o LP as faixas “Billy negão”, 14 que descreve um bandido sentimental (herói e marginal ao mesmo tempo), e “Certo dia na cidade”, 15 dedicada a Jimi Hendrix e a todos aos mitos trágicos do rock que morrem jovens. Já o blues “Down em mim”, foi composto por Cazuza e Roberto Frejat em referência direta a “Down on me”, gravada por Janis Joplin. Portanto, as temáticas da marginalidade e da transgressão já foram abordadas desde o primeiro trabalho de Cazuza como cantor do Barão Vermelho.^16 No caso de “Down em mim” e “Certo dia na cidade”, Cazuza parece lidar aqui com a ideia de que quando a hedonista ligação entre arte e vida torna-se tão intensa, pode gerar um fim trágico, como são exemplos Jimi Hendrix e Janis Joplin, que morreram de overdose. Em “Down em mim”, a cantora norte-americana foi incluída na composição de Cazuza em um contexto sombrio comentado pelo verso “o banheiro é a igreja de todos os bêbados”. Segundo Cazuza, Janis Joplin possui fundamental importância na constituição de sua maneira de cantar: Quando ouvi aquela mulher descobri que ela era genial. Aí eu entendi o que era o blues e através da Janis descobri a Billie Holiday e mesmo a Dalva de Oliveira. Tudo aquilo que eu já curtia, mas achava cafona. Aliás, sou cafona e assumo. Sou meio Augusto dos Anjos, “escarra na boca que te beija”. (Cazuza apud Araújo, 2001, p.28). Após o lançamento do primeiro disco do Barão Vermelho, em 1982, Caetano Veloso^17 incluiu em seus shows e gravou “Todo amor que houver nessa
(^14) “Billy negão” é ambientado na capital carioca, através de apropriação do desenho animado dos quadrinhos “Billy The Kid”. (Frejat apud Leoni, 1995, p.170). (^15) Trecho da letra “Certo dia na cidade”, composição de Maurício Barros, Guto Goffi e Cazuza: “Já nem sei quanto tempo faz/ Ele foi como quem se distrai/ Viu na cor de um som a cor que atrai/ Foinum solo que não volta atrás/ Tchau, mãezinha, fui beijar o céu/ A vida não tem tamanho/ Tchau, paizinho, eu vou levando fé/ É tudo luz e sonho/ Eu vou viver, vou sentir tudo/ Eu vou sofrer, euvou amar demais.”
(^16) É importante aqui ter cuidado para não naturalizar o Barão Vermelho como a “banda de Cazuza”, lembrando que esta seguiu trabalho com Roberto Frejat como vocalista e completou 25 anos de existência no ano de 2008. (^17) De Caetano Veloso, Cazuza gravou posteriormente “Eclipse oculto” com o Barão Vermelho, lançado no CD Cazuza & Barão Vermelho - Melhores Momentos Som Livre -, de 1989, e “Esse Cara”, em carreira solo no disco Burguesia , lançado em 1989 pela Polygram.
Se em determinadas situações Caetano Veloso adota o papel de quem elege publicamente com quais artistas deseja dialogar, posição parecida possui Augusto de Campos em “Soneterapia”, elegia a Caetano Veloso publicada na revista Navilouca , em 1975. Nesse soneto, Campos opta por Veloso em contraposição a Carlos Drummond de Andrade e a João Cabral de Melo Neto: drummond perdeu a pedra: é drummundano/ joão cabral entrou pra academia/custou mas descobriram que caetano/ era o poeta (como eu dizia).^21 Tais exemplos de eleições críticas por parte de Veloso e Campos podem ser analisados a partir de escolhas pelas quais certos artistas optam por dialogar. Se Caetano Veloso seleciona duas obras de Lobão (o disco Cena de Cinema e a canção “Me chama”) e a lírica de Cazuza (principalmente a de “Todo amor que houver nessa vida”), organiza estes elementos em uma espécie de paideuma^22 da música popular brasileira, nomeado por Veloso como o “grupo dos hermetismos pascoais, mil tons e tons geniais”. 23 Augusto de Campos, por sua vez, ao nomear Caetano Veloso como parte de seu paideuma ,^24 estabelece uma forma pelo qual sua seara artística não é formada somente por literatos, mas também por um músico popular.^25
(^21) O restante de “Soneterapia”, de Augusto de Campos, publicado na Revista Navilouca, em 1975, segue assim: “O concretismo é frio e desumano/ dizem todos (tirando uma fatia)/ e enquanto nósentramos pelo cano/ os humanos entregam a poesia/ na geléia geral da nossa história/ Sousândrade kilkerry oswald vaiados/ estão comendo as pedras da vitória/ quem não comunica dáa dica:/ to pra vocês chupins desmemoriados/ só o incomunicável comunica.” Disponível em: <www.elsonfroes.com.br/sonetario/campos.htm > (consulta em 20/12/09). (^22) Estas seleções estabelecidas por Veloso e Campos, possuem certa semelhança com o conceito deautores que o interessasse estabelecer uma área cultural em comum. paideuma adotado por Ezra Pound (2006) para eleger conexões e afinidades teóricas com
(^23) Nome em referência aos músicos Hermeto Pascoal, Milton Nascimento e Tom Jobim. A expressão “hermetismos pascoais, mil tons e tons geniais”, criada por Caetano Veloso, aparece pela primeira vez na letra de “Podres poderes”, do álbum Velô. (^24) Definido pelo etnógrafo Leo Frobenius, o paideuma provém do conceito germânico de Kulturkreise (áreas de cultura). Ver: http://odemonioamarelo.blogspot.com (Consulta em 18/07/09). (^25) Nesse caso, Campos estabelece antes de tudo uma provocação ao eleger um músico popular em contraposição a dois poetas “canônicos” como Drummond e Cabral. Tal provocação pode serobservada ainda em “Soneterapia II”, soneto alexandrino com posto por Campos a partir de versos retirados de letras de músicas populares. Na crítica de Augusto de Campos (Campos apud Pound,2006), a formação de um paideuma auxilia o artista a ordenar mais rapidamente quais são os vínculos essenciais que deseja estabelecer, evitando que tal artista perca tempo com itensantiquados impostos por modismos ou pela cronologia da história. Nas próprias palavras de Campos, o paideuma de Pound representa a “ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível , a parte viva dele e gastar um
Desta forma é interessante aqui considerar a noção de paideuma levando em conta o fato de que foi após ingressar na seara artística de músicos “canônicos” como Caetano Veloso e Ney Matogrosso,^26 que Cazuza e o Barão Vermelho começaram a fazer sucesso comercial no cenário roqueiro nacional, sendo chamados inclusive para fazer sob encomenda a música tema para o filme de Lael Rodrigues, Bete Balanço , lançado em 1984. Nesse filme, Cazuza também participou como ator e escreveu a letra de “Bete balanço”, canção composta para o personagem homônimo de Deborah Bloch e incluída no segundo LP da banda, Barão Vermelho 2.^27
Sobre tal relação do cinema com o “rock brasileiro dos anos 80”, é importante observar a obra do cineasta Lael Rodrigues, construída em consonância com a estética do BRock. Além de Bete Balanço , Rock Estrela narra o caso de um jovem que sonha tornar-se um astro de rock ao cantar a música tema composta por Léo Jaime. Out ro filme com narrativa “roqueira” é Areias escaldantes , de Francisco Paula, de 1985, no qual o Titãs e Lobão atuaram. Em 1991, Lobão também compôs a música-tema para Matou a família e foi ao cinema , uma refilmagem do filme de Júlio Bressane, realizada por Neville de Almeida. Sobre este diálogo do “rock brasileiro” com o cinema, é importante citar também a música “Rubro Zorro”, composta pela banda paulistana Ira! em homenagem ao Bandido da luz vermelha , filme de Rogério
mínimo de tempo com itens obsoletos.” (Campos, Augusto de. “As antenas de Pound”. Apud Pound, 2006). (^26) Ney Matogrosso gravou “Pro dia nascer feliz”, de Cazuza e Roberto Frejat, no LP Pois É de 1983 e Caetano Veloso registrou a música de Cazuza “Todo amor que houver nessa vida”, no LP Totalmente Demais (ao vivo) , lançado em 1986 pela Polygram , mas incluído por Veloso primeiramente em um show no Canecãoainda será gravada nos “anos 80” por Gal Costa, no LP no ano de 1983. A música de Roberto Frejat e Cazuza Bem Bom , em 1985, lançado pela RCA.
(^27) Como afirma Júlio Naves Ribeiro, a capa do LP Barão Vermelho 2 , possui um fator inusitado para o universo roqueiro, por se assemelhar às capas dos primeiros LPs de Chico Buarque,mostrando “closes dos rostos imberbes e ‘inocentes’ dos cinco ‘barões’.” (Ribeiro, 2009, p.99). O segundo LP da banda,chamada “Largado no Mundo”, dedicada mais especificamente a Tavinho Paes e Torquato Barão Vermelho 2 , trouxe uma canção-ode aos poetas vagabundos Mendonça. Segundo Roberto Frejat, a música: “é uma declaração aos poetas vagabundos quetransitam por todos os ambientes sem sair do tom.” (Frejat apud Araújo, 2001, p.56). Trecho da letra de “Largado no Mundo”, parceria de Cazuza e Roberto Frejat: “Mas Deus protege/ Quem vivesem casa/ Pro bem dos homens/ Fez a cobra sem asa/ Sem teto hoje/ Amanhã no Sheraton/ Eu entro em todas/ Sem sair do tom/ Chiquita Bacana/ Aurora em Copacabana/ Largado no mundo/Eu vivo largado no mundo.” Já em “Carente profissional”, o trecho “nem dopante me dopa/ a vida me endoida” possui referência direta ao mandrix , tranquilizante sedativo popular entre os roqueiros da época.
Misturando Lupicínio Rodrigues^31 com a melancolia do blues , Cazuza se apropria do kitsch e rima amor com dor tal qual Lupicínio, explorando o paroxismo dos amores mal resolvidos em “Você se parece com todo mundo”. Assim, a melancolia de Cazuza é, na maioria das vezes, uma tristeza transfigurada em um canto que beira o uivo e proclama a crueza de uma voz que se situa entre a fala e o grito e mistura o conteúdo passional da letra com uma interpretação visceral e muitas vezes irônica. Como afirma Octavio Paz (1984),^32 a ironia é a “grande invenção romântica” e representa um mecanismo pelo qual o artista lida com sua obra como meio de devorar o conteúdo trágico da vida, sacralizar o profano e profanar o sagrado. Segundo Octavio Paz:
Paixão crítica: amor imoderado, passional, pela crítica e seus preciosos mecanismos de desconstrução, mas também crítica enamorada de seu objeto, crítica apaixonada por aquilo mesmo que nega. Enamorada de si mesma e sempre em guerra consigo mesma, não afirma nada de permanente nem se baseia em nenhum princípio: a negação de todos os princípios, a mudança perpétua é seu princípio. Uma crítica assim não pode senão culminar em um amor passional pela manifestação mais pura e imediata da mudança: o agora. (Ibid., p.21). (Grifo meu). Para Cazuza construir sua persona , a influência de Lupicínio Rodrigues é tão importante, por exemplo, quanto à de Allen Ginsberg, como podemos notar em sua declaração: “Eu não me considero poeta, sou apenas um letrista para divertir o povo” (Cazuza apud Araújo, 1997, p.370). Cazuza adorava se autodefinir: “Eu tenho um jeito de cantar blues, mas o meu modo de escrever é samba-canção.”; “Eu sou o Ibrahim Sued do rock”; “Prefiro Toddy ao tédio”; “Politicamente sou mais John Lennon do que Chico Buarque”. (Cazuza apud Araújo, 1997, p.371-391).
(^31) Sobre o criador dos sambas -canções de “dor-de-cotovelo”, em seus discursos o gaúcho Lupicínio Rodrigues dramatiza a infidelidade e a dor amorosa de tal maneira que a transforma em expressão coletiva. Retratando tragédias passionais, as letras de Lupicínio Rodrigues trazem umaunidade entre a “forma música e vida”. Em uma melancolia passadista de auto-envenenamento, com sua dor chorosa, Lupicínio produz uma mitologia de amores que não deram certo, traduzindoas “dores-de-cotovelo” e produzindo um sentido estético universal. (Dias, 2009, p.29).
(^32) Octavio Paz afirma que se utilizando de uma linguagem coloquial, o romantismo pretende juntar imagem e discurso, renovando a linguagem poética através de uma fala popular que renunciacerta “linguagem poética” para utilizar uma linguagem comum e propor a poesia como uma “maneira nova de sentir e viver”. (Paz, 1984, p.85).
Nas letras de Cazuza, o bar é tratado como lugar do trânsito e da alta madrugada, espaço em que os personagens esperam resgatar algum amor perdido. Algumas de suas canções ambientadas no “Triângulo das futilidades”, como “Vem comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”, 33 apresentam a temática de um personagem errante buscando sua redenção na noite dos insones, desiludidos e vagantes. Um sol noturno^34 aparece no combustível inflamável da noite exposta por Cazuza em certas crônicas e canções que compõem pequenos documentários dos fins de noite do “Baixo Leblon” (ponto de encontro de artistas e intelectuais no Rio de Janeiro, no qual ele chamava de “Triângulo das Futilidades”, formado pelos bares Real Astoria, Pizzaria Guanabara e Bar Diagonal). As figuras dramáticas de algumas de suas letras remetem a situações urbanas no qual o lado escuro da noite conflui com a hora do artista, artista este que move pelos bares em sua permanente caça nas calçadas do Leblon, calçadas tão ficcionais quanto reais.^35
(^33) Trechos das letras de “Vem comigo”, “Completamente blue”, “Ponto fraco”, “Dolorosa” e “Meu cúmplice”; respectivamente: [“Bebe a saideira (...) Há dias que eu planejo impressionar você/ Maseu fiquei sem assunto (...) Há dias com azia/ O remédio é o teu mel/ Eu sinto tanto frio/ No calor do Rio/ Já mandei olhares prometendo o céu/ Agora eu quero é no grito!”.]Encho a cara no Leblon/ Tento ver na tua cara linda/ O lado bom/ Você chega e sai e some/ E eu [“Sou feliz em Ipanema/ te amo assim tão só/ Tão somente o teu segredo/ E mais uns cem, mais uns cem/ Tudo azul, tudoazul/ Completamente blue (...) Como é estranha a natureza/ Morta dos que não têm dor/ Como é estéril a certeza/bar em bar/ Jogando conversa fora/ Só pra te ver/ Passando, gingando/ Me encarando/ Me De quem vive sem amor, sem amor”.] [“Benzinho, eu ando pirado/ Rodando de enchendo de esperança/ Me maltratando a visão/ Girando de mesa em mesa/ Sorrindo praqualquer um/ Fazendo cara de fácil/ Jogando duro/ Com o coração”.] [“Fim/ A noite acabou feito gim/ Espuma branca lavando o meu pé/ Os amigos de sempre já tão indo embora/ E o garçom fecha o bar/ Mal humorado e cansado (...) Mas se você por acaso voltasse pra mim/ Por baixo damesa chutando o meu pé/ Me piscando o olho pra gente ir embora/ Doce ar de chantagem para uma noite melhor/ Nós dois e mais ninguém”.] [“Hoje eu acordei querendo uma encrenca/ Escreviteu nome no ar/ Bati três vezes na madeira/ Senti você me chamar/ Na verdade uma carta em braile/ Me deu uma certeza cega/ Você estava de volta ao bairro/ Em alguma esquina à minhaespera/ Meu amor, meu cúmplice/ Eu sempre vou te achar/ Nos avisos da lua/ Do outro lado da rua”.] (^34) Na letra de “Completamente blue”, Cazuza descreve este sol noturno: “Como é triste a tua beleza/ Que é beleza em mim também/ Vem do teu sol que é noturno/ Não machuca e nem fazbem”.
(^35) Sobre o Baixo Leblon, Tavinho Paes acentua certa aura de “sofismas românticos” que permeavam o local na década de 70 e 80, como relata: “Existem determinadas histórias em que émuito mais saudável você poder contá-las do que ter participado delas. As que montam a cidade cenográfica conhecida pelo código de área ‘Baixo Leblon’ são assim. Situam -se numa zona-fantasma travestida de lendas (...) Todas reverberam entusiasmo e sofismas românticos visceralmentedependem m (^) aisagoniados. das pessoas As vidas que queas viveramse encontraram nem pertencem por aquelas mais calçadas aos sujeitos e bares que nãoas encarnaram.(...) Todos os principais e todos os obscuros artistas da época, todos os melhores etodos os piores produtores culturais , todos os perseguidos e perseguidores, todos os traficantes e todos os adictos da cidade; gente de todas as raças, classes, credos e idades bateram ponto naquele asilo (...) todos os loucos refugiavam-se nas estalagens barrocas do Baixo Leblon. Lá,
marginais e dos drop-outs^37 e potencializando a transformação individual romântica.
No mesmo ano de 1985, o Barão Vermelho se apresenta no Festival Rock in Rio no mesmo período da eleição de Tancredo Neves. No show, Cazuza comemorou o fim da ditadura militar, cantando “Pro dia nascer feliz” como metáfora da abertura política do país, com o guitarrista Roberto Frejat vestindo verde e amarelo.^38 Ainda em 1985, Cazuza se desligou do Barão Vermelho e lançou seu primeiro disco solo, Exagerado. Na canção homônima “Exagerado”, Cazuza mistura a banalidade com o discurso amoroso ao embaralhar sua declaração: “amor da minha vida / daqui até a eternidade”, com as rosas roubadas que traz para ironizar tal romantismo.^39 Aqui Cazuza ri e debocha da dor, dessacraliza e satiriza o amor quando afirma que “o amor é brega”, ou que “amar é abanar o rabo, latir e dar a pata”. 40 Seu tom de voz parodia o canto
(^37) Cláudio Willer (2009) chama a atenção para a imagem caricatural da poesia beat discutida muitas vezes por jornalistas e críticos mais enquanto fenômeno comportamental do que como movimento literário. Assim, Willer ressalta o fato de que o termocriado pela grande mídia de São Francisco (associando o termo beat beatnik ao satélite russo é um vocábulo pejorativo Sputnik ), em meados dos anos de 1960, como uma corruptela deconsciência do som da linguagem, os beats cultuam o desregramento e transgressão como beat. Incorporando a prosódia bop através da maneira de mistificar o submundo em que atuam e sacralizar os marginais excluídos (como os hipsters , que são para os beats os “marginais absolutos”). O próprio termo beat em inglês é proveniente de beated , isso é: “golpeado”, “batido”, “derrotado”.Como delineia Willer (Ibid.), estes são os significados do termoentrevista de 1959, deu esta interpretação ao termo para contrapor-se a seu sentido mais beat : “beatitude, palavra-chave do repertório de Kerouac, que, em derrotista. (...) Beatnik, no mesmo sentido, é um termo irônico, depreciativo, criado pela mídia nofinal da década de 1950 (apareceu pela primeira vez no San Francisco Chronicle de 2 abril de 1958). Fusão com Sputnik, o primeiro satélite artificial, referia-se ao fenômeno coletivo, o grandenumero de jovens que vinham adotando a vestimenta e atitude dos beats.”
(^38) Ver DVD Barão Rock in Rio 1985, lançado pela Som Livre, em 2007. Para Arthur Dapieve (1995), o Barão foi “o primeiro porta-voz de sua geração”. (Ibid., p.68). (^39) Mecanismo parecido utiliza Cazuza na canção “Doralinda”, composta em parceria com João Donato, quando sua declaração amorosa se constrói simultânea à ironia presente no trecho:“Doralinda eu vou te dar todo o dinheiro falso do mundo”.
(^40) Essa é possivelmente a letra mais irônica de Cazuza, com imagens como um galã que é bombardeado por balas de hortelã, mulatas que esperam por sheiks alemães enquanto trabalham em um escritório, um eu lírico que descreve um menino que quer ser um herói triste e espera queseu amor caia em sua rede cheio de cacos de vidro, etc. A seguir a letra de “Quarta-feira”, composição de Cazuza e Zé Luís, gravada no LPareia da praia/ Eu banco o deprimido/ Talvez você caia/ Na minha rede um dia/ Cheia de cacos de Só se for a dois , de 1986: “Livro depressivo/ Na vidro/ De cacos de vidro/ E o galã não vê/ Que é bombardeado/ Com balas de hortelã/ E a santamilagrosa vê/ Que Deus não dá esmola/ Subitamente assalta/ Quero que você/ Me ame bastante/ Daqui até a Constante Ramos/ Vamos, vamos/ Vamos lado a lado/ Como dois gigantes/ Enfrentando os ônibus/ E o menino triste/ Quer ser um herói/ Mesmo um herói triste/ Mesmo umherói triste/ E a dama sem cara/ Das bolsas vazias/ Sente um amor aflito/ Eu ando apaixonado/ Por cachorros e bichas/ Duques e xerifes/ Porque eles sabem/ Que amar é abanar o rabo/ (Éabanar o rabo)/ Lamber e dar a pata/ E as mulatas sonham/ Que são raptadas/ Por sheiks alemães/ No escritório sonham/ Que já é de tarde/ Todas as manhãs.”
através de uma combinação da temática do amor não correspondido com certo traço cáustico de sofrimento romântico da “dor-de-cotovelo” do que está cantando.
Composta em parceira com Leoni e Ezequiel Neves, “Exagerado” constrói, de certo modo, o vínculo de Cazuza com uma “tradição do exagero” que valoriza uma intens ificação da vida e dos sentimentos extremos, remetendo a certos elementos da idolatria dos excessos românticos da Sturm und Drung.^41 Segundo Benedito Nunes (Nunes apud Guinsburg (org), 1978), “o romântico se fixa à inquietude que o dilacera, e amando o contraste pelo contraste, vive, em meio de antíteses, uma existência dúplice e desdobrada.” (Ibid., p.68). Tal bi- polaridade romântica é defendida através de uma ciência da vida que exige do entendimento apenas aquilo que o sentimento possa permitir, já que os românticos germânicos entendem a arte como um sintoma de vida.^42 Expondo uma dramaticidade de temperamento, o romântico deve seguir seus impulsos mais do que as regras impostas pela sociedade. Assim, seria um erro, para o romântico alemão, exigir do entendimento o que apenas o sentimento possa fornecer através da influência das paixões e dos hábitos.
No sentido de valorizar um mundo de experiência centrado na potência de uma intuição poética e de um vigor dos exageros, em determinados momentos, certos discursos de Cazuza remetem a preceitos românticos, como quando propõe: “O poeta exagerado me define, meu trabalho de letrista sempre tem uma overdose de sentimento, overdose de amor, mas tudo com exagero.”^43
(^41) Chamado de “a idade do gênio”, a Sturm und Drung pode ser definida como a época em que se valorizavam certos valores personalistas como a originalidade do artista. Expressos em Goethe e Schiller, o preceitoenquanto movimento estético. Ver: Bornheim, Gerd. Tempestade e Ímpeto foi o principal precursor do romantismo germânico Filosofia do Romantismo. Apud Guinsburg (org), 1978. (^42) Como afirma Renato Pogglioli (1968, p.18), influenciado pelas ideias do Sturm und Drung , o romantismo alemão buscava transcender o campo da arte, propondo-se mais como movimentodinâmico do que como escola artística clássica. Segundo Gerd Bornheim, o romantismo confunde- se muitas vezes como sinônimo da cultura germânica, já que o romantismo abarca todas as fasesdessa cultura. Ver: Bornheim apud Guinsburg (org), 1978.
(^43) Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas Isto É, Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. In: www.cazuza.com.br