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Guias e Dicas
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Oficial do Exército envolvido em contravenção e tortura em Guimarães, Notas de aula de Direito

Este documento narra a história de ailton guimarães jorge, um oficial do exército que se envolveu em contravenção e tortura durante a ditadura militar no rio de janeiro. A história começa com guimarães sendo forçado a se associar a um bando de contrabandistas por imposição de angelo maria longa, um dos líderes da contravenção na época. Após sofrer um sequestro e ser ameaçado com a morte, guimarães aceita a oferta de sociedade e investe cr$ 200 mil para pagar a dívida do pequeno banqueiro quebrado. Guimarães se torna um chefe do bando e, em troca, recebe proteção e impunidade da ditadura. O documento também relata como guimarães influenciou a carreira militar de outros oficiais, incluindo enzo martins peri, futuro comandante do exército, e roberto jugurtha câmara senna, comandante da operação rio. A história é baseada em documentos de arquivos públicos e depoimentos de militares, ex-agentes, ex-presos políticos, sambistas, historiadores e cientistas políticos.

O que você vai aprender

  • Quais outros oficiais foram influenciados por Guimarães na carreira militar?
  • Qual foi a relação de Guimarães com Angelo Maria Longa e os outros líderes da contravenção?
  • Como a ditadura militar influenciou a carreira de Guimarães?
  • Quem era Ailton Guimarães Jorge e como ele se envolveu em contravenção?
  • Quais documentos e depoimentos foram utilizados para escrever este relato?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Andre_85
Andre_85 🇧🇷

4.5

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1ª edição
2015
RIODEJANEIRO •SÃO PAULO
EDITORARECORD
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1ª edição

R I O D E J A N E I R O • S Ã O P A U L O

E D I T O R A R E C O R D

Sumário

Epílogo

  • Introdução
  • A dívida fatal 1. Guimarães
  • Bobearam!
  • Guimarães e o nefasto comunismo
  • Vila Militar, o laboratório da guerra suja
  • A senha para a barbárie
  • Eremias e o tiro em Guimarães
  • “Também temos o direito de matar vocês”
  • Prisão e fim da linha nos porões
  • Sonhar com rei 2. Anísio
  • O regime do medo na Baixada
  • Política, jogo e drogas
  • Torturador e lugar-tenente de Anísio
  • Da Casa da Morte à quadra da Beija-Flor
  • Um torturador na revolução de “Ratos e urubus”
  • “Sentávamos o dedo neles”
  • “Desaparecimento é mais importante que morte”
    • Rubens Paiva Chefe de barracão da Beija-Flor envolvido no caso
  • Doutor Léo, o pesadelo
  • Pai e filho na polícia e na contravenção
    • e ameaça a policiais Anísio nos arquivos da ditadura: bicho, suspeita de tráfico
  • A ordem do progresso empurra o Brasil para a frente
  • Ao cantar a liberdade, sambistas desafiam a censura
  • O palpite certo é Beija-Flor
  • De cartola do Bangu a contraventor preso pelo AI-5 3. Castor
    • e empregados A prisão de Castor na Ilha Grande: oito quartos
  • Sou muambeiro?
  • Castor e o time escalado na repressão
  • Geisel desiste de caçar bicheiros
  • Brasil, Brasil, avante, meu Brasil
  • O gigante Brasil e a conexão italiana
  • A nova tropa do Capitão 4. Guimarães II
  • Perdigão, o feroz aliado
  • A irmandade do Careca
  • Aguiar, o irmão
  • O fim do “homem de ouro”
  • Matança no Espírito Santo
  • Exibindo a patente no carnaval
    • do Morro dos Macacos SNI: Guimarães, contrabando de armas e traficantes
  • Misaque, Jatobá e o bom bicheiro 5. Anísio II
    • ele e eu tivéssemos uma sobrevivência” A carta de Eliana: “Enrolei muita maconha para que
  • Em família
  • Operação tramada no SNI salva Castor 6. Castor II
  • “Viva Figueiredo”
  • Castor nunca esquece
  • Um monumento vai aos ares
    • a toda hora” “A contravenção não tem culpa que o governo mude
  • Liesa, uma fachada de legalidade na redemocratização
  • O comandante e o medo
  • O jogo na hora do voto
  • SNI defende a legalização do bicho
  • Churrasco e Beatles
  • “Faria melhor se fosse morar em Cuba”
  • A máfia da jogatina na prisão
    • corrupção e lavagem de dinheiro O Clube Barão de Drummond: formação de quadrilha,
  • Agradecimentos
  • Notas
  • Acervos e periódicos
  • Bibliografia
  • Sobre os autores

Introdução

O jogo do bicho nasceu nas ruas do Rio, em 1892, explorando

a esperança da população pobre da cidade. Começou inocente, no Jardim Zoológico do barão de Drummond, em Vila Isabel. No primeiro sorteio, com 25 bichos, deu avestruz, erroneamente conhecido como a ave que enterra a cabeça em um buraco para se esconder. Logo o jogo ganhou as esquinas e prosperou. Quando o poder público se deu conta, era tarde. À medida que foi cres- cendo, infiltrou-se no aparelho de Estado. O bicho se impôs pela violência e pela corrupção. Nada foi capaz de detê-lo. Um século depois da primeira extração, o jogo do bicho chegou ao auge como organização criminosa. Uma operação da Polícia Federal, chamada Furacão, flagrou-o em 2007 subornando um in- tegrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país. Até então, não se sabia de tamanha audácia. Paulo Medina, o ministro que teria vendido uma sentença aos bicheiros por R$ 1 milhão, acabou afastado. Dos caixotes de frutas onde co- lhia as apostas de rua, a máfia do jogo migrara para as máquinas caça-níqueis. Para atropelar autoridades que ousavam atrapalhar os negócios, foi buscar blindagem judicial em Brasília. Como nunca respeitou limites, só precisou precificar as necessidades. O bicho que profanou o STJ não é um traço da cultura popular. A imagem bairrista e romântica deu lugar a uma organização

Introdução

foi singular, porque mudou para sempre o perfil do crime organi- zado. Amparada nos pilares de hierarquia e disciplina aprendidas com os militares, a máfia do jogo se organizou, se diversificou e cresceu. Conhecimentos de logística, estado-maior, administra- ção financeira, divisão de trabalho e espionagem moldaram o tamanho e a força da mais estruturada facção criminosa do país. Este pelotão de agentes que migrou dos porões da tortura para as fileiras do jogo do bicho, levando junto a brutalidade, a ara- pongagem e a disciplina da guerra contra as esquerdas, foi tema de uma série de reportagens publicada pelo jornal O Globo entre os dias 6 e 9 de outubro de 2013. Para mostrar como os bicheiros ajudaram a perseguir inimigos do regime, e a ditadura retribuiu com proteção e impunidade, recorremos a documentos de dois arquivos públicos e da Biblioteca do Exército e a depoimentos de militares, ex-agentes, ex-presos políticos, sambistas, historiadores e cientistas políticos, além de consultas a acervos de jornais. Uma das fontes, o coronel Paulo Malhães, um dos mais brutais agentes do regime, revelou, em entrevista até então inédita, detalhes de sua própria experiência com o crime organizado. Assassinatos do período misturaram interesses militares e civis, envolvendo bicheiros e torturadores. A guarnição da 1ª Com- panhia de Polícia do Exército (PE), da Vila Militar, em Deodoro, foi a gênese desse fenômeno. Dois dos principais centros de tortura do Rio, o Destacamento de Operações de Informações (DOI) da rua Barão de Mesquita, na Tijuca, e a Casa da Morte, aparelho montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petró- polis, também foram incubadoras de capangas da contravenção. Na época da publicação da série, o ponto final da reportagem não era o fim da história. O livro dá a esse episódio, praticamente ignorado na história do regime militar, uma nova dimensão, com acesso a documentos e fontes inéditos.

OS PORÕES DA CON TR AV ENÇÃO

Logo após 1892, as autoridades, como o mítico avestruz da cabeça enterrada, demoraram a perceber o tamanho do problema criado pelo barão de Drummond. Em 1985, a história se repetiu. Enquanto a sociedade brindava a chegada dos novos tempos democráticos, o bicho fazia a sua festa particular sem ser inco- modado. Uma reação de peso só veio na década seguinte, com a sentença de prisão no processo comandado pela juíza Denise Frossard. Mas era tarde. O bicho se consolidara. Violento, corrup- to, mas fazendo-se passar pelo mesmo jogo inocente e popular dos tempos do Jardim Zoológico do barão.

OS PORÕES DA CON TR AV ENÇÃO

apontadores. Dali, rumou para uma agência bancária no Centro. Contava os níqueis para pagar o que devia e se livrar para sempre daquele aborrecimento. Um advogado, com quem se reuniu no fim da tarde, o acon- selhara a ser cauteloso. A ansiedade de Guto afastava-o dos cuidados habituais. Ele saiu novamente de casa, à noite, para a conversa decisiva, marcada em um restaurante de Icaraí. Uma estudante, mais tarde, o viu passar com uma acompanhante, a bordo de um Passat marrom, pela rua da Conceição, perto da estação das barcas. E foi a última vez que se teve notícias de Agostinho Lopes da Silva Filho, o Guto, cujo paradeiro é um mistério até hoje. O in- quérito, aberto na 78ª Delegacia Policial (Fonseca), teve o mesmo destino de outros ligados à contravenção: frases de efeito da po- lícia no início e depois o esquecimento, sem apontar culpados. O que teria acontecido com Agostinho, contraventor que dominava um modesto território de cerca de 20 pontos? Na ocasião, a família do bicheiro^1 não hesitou em apontar o dedo para o forasteiro, um oficial do Exército conhecido apenas por Guimarães, que Guto tivera de engolir como sócio por imposição de Ângelo Maria Lon- ga, o Tio Patinhas, 2 um dos grandes da contravenção na época. Os negócios de Guto não iam bem e sua fragilidade financeira o deixou exposto. Um mês antes, no dia 29 de maio, ele já sofrera um sequestro:^3 quatro homens, exibindo carteira da Polícia, o abordaram em frente a sua casa e o levaram algemado e encapu- zado para o Rio de Janeiro, pressionando-o a falar sobre a suposta ação de uma quadrilha de traficantes de drogas em Niterói. Dessa vez, escaparia. Os sequestradores o liberaram, mas prometeram continuar no seu encalço. Guto devia dinheiro a Patinhas. O chefão atuava na “descar- ga”, operação de garantia de pagamento do prêmio em casos de

GU I M A R ÃES

apostas vultosas, uma espécie de seguradora dos gerentes dos pontos. Como esses pequenos bicheiros não tinham condições de pagar, repassavam as apostas de risco aos grandes, para não quebrar em caso de vitória do apostador. Tio Patinhas — cabeleira branca, óculos de aros grossos e lente fundo de garrafa, lembrava o Chacrinha — não dava tanta atenção a Guto. Estava, no entanto, impressionado com o jovem oficial do Exército que lhe fora apresentado pelo detetive Euclides Nascimento, o Garotinho, um dos “homens de ouro”, grupo de elite criado pela polícia carioca em 1969 e que deu origem ao Esquadrão da Morte. Patinhas resolveu abrir as portas da contra- venção a Guimarães, oferecendo-lhe sociedade, justamente nos pontos de Guto, por um investimento inicial de Cr$ 200 mil,^4 o que cobria a dívida do pequeno banqueiro quebrado. Com o gesto, Patinhas queria resolver dois problemas: a dívida de Guto e a dor de cabeça causada por uma quadrilha de agentes da ditadura, que, desde 1971, vinha extorquindo contrabandistas ligados ao bicho, tomando suas mercadorias para depois revendê- -las com ágio aos próprios donos, o chamado “golpe do arrepio”. Um dos chefes desse bando era justamente Guimarães, cuja ou- sadia em desafiar o poder dos bicheiros surpreendera a cúpula da contravenção. Em vez de enfrentá-lo, era mais negócio tê-lo a seu lado. E o interesse era recíproco: o militar via na contravenção uma saída para a encruzilhada em que se metera nos quartéis. Isolado na tropa desde que passara a comandar a quadrilha de extorsão a contrabandistas, o capitão-intendente Ailton Guima- rães Jorge, então com 38 anos, sabia que não tinha futuro algum no Exército, mesmo depois de absolvido no processo criminal em que havia se afundado, por causa do envolvimento com o bando. Entre definhar encostado em alguma função burocrática e ingressar no promissor mundo do crime organizado, Guimarães,

GU I M A R ÃES

da contravenção quando acontecia algum tipo de dissabor a um bicheiro. Outros costumes seriam quebrados. Mas o militar ja- mais assumiu a primeira jogada. Negou qualquer envolvimento no caso. Nunca se livrou das suspeitas. “Pelo amor de Deus, pare com isso. Na contravenção, há respeito. Não precisamos usar esses métodos. Segundo eu sei, Guto tinha muitos desafetos, por se meter com mulheres casadas”, desconversaria em entrevista ao jornal O Globo , em outubro de 1981.^6 O sumiço inaugurou a nova carreira. Do Exército, restara- -lhe apenas a patente. Ailton era agora o Capitão Guimarães da contravenção.

Bobearam!

Antes de lançar os quepes para o alto e cruzar os portões da es- cola pela última vez, os jovens ouviram o Código de Honra da turma, formado pelas palavras “Probidade, Lealdade, Honra e Responsabilidade”.^7 A cena aconteceu em 20 de dezembro de 1962, data em que 432 cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende (RJ), se graduaram aspirantes. A cerimônia foi prestigiada pelo presidente João Goulart, acompanhado dos generais Amaury Kruel, ministro da Guerra, e Albino Silva, chefe do Gabinete Militar. O marechal Mascarenhas de Morais, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra, de 79 anos, também compareceu à festa.^8 Jango, a essa altura, já era alvo de conspiradores. Faltava um mês para o plebiscito que rejeitaria o parlamentarismo e lhe daria plenos poderes. Focos de insatisfação cresciam nos quartéis. O planeta vivia a paranoia da Guerra Fria. No Brasil, os america- nos mandavam a diplomacia às favas e alimentavam a discórdia

OS PORÕES DA CON TR AV ENÇÃO

abrindo os cofres aos candidatos de oposição na campanha eleitoral de outubro.^9 Os militares ligados ao presidente eram chamados pejorativamente de “melancias”, verdes por fora e vermelhos por dentro. Os cadetes tinham entrado para a Aman em 15 de fevereiro de 1960, com idade em torno dos 18 anos, para compor a turma Duque de Caxias, a “Tuducax”. Três anos depois, no encerramento da formatura, despediam-se da escola caminhando pela pista de mais de 500 metros que ligava o conjunto principal da academia ao Portão das Armas. Na saída, ao lançar os quepes ao alto, honrando uma tradição local, deram o seu grito de guerra: “Bobearam!” Muitos da “Tuducax” não bobearam. Da turma, 28 atingiriam o generalato, entre os quais Enzo Martins Peri, futuro comandante do Exército (governos Lula e Dilma, 2007-2014), Sérgio Ernesto Alves Conforto, encarregado do segundo IPM do Caso Riocentro (1999), e Roberto Jugurtha Câmara Senna, comandante da Ope- ração Rio, de ocupação dos morros, em 1994. O cadete carioca Ailton Guimarães Jorge, por caminhos tor- tos, também não bobeou. Como oficial de Intendência, arma de menor prestígio no Exército, sabia que dificilmente prosperaria no oficialato. Estava certo. Sua careira militar, medíocre e violen- ta, terminaria em março de 1981. Desligou-se prematuramente após dezenove anos de farda, sete deles afastado para responder à acusação de extorquir contrabandistas, firmando-se como um dos capi na jogatina do bicho. Sua nova tropa era parecida com o Exército em hierarquia, armas e combatentes, mas longe de valores como probidade, honra e responsabilidade dos tempos da Aman. Filho do guarda civil Felippe Jorge e de Geny Guimarães Jorge, Ailton Guimarães Jorge nasceu em 23 de novembro de 1941. As fardas o encantavam desde cedo. Quando criança, gostava de passear com o pai nas viaturas policiais.^10

OS PORÕES DA CON TR AV ENÇÃO

por ter participado do desfile militar de 7 de setembro daquele ano, um elogio do então comandante da 1ª Região Militar, ge- neral Jair Dantas Ribeiro, que viria a ser um dos personagens centrais da crise que se aproximava.^13 Porém, um mês depois, tomaria mais seis dias de cadeia por ter faltado a uma sessão de Educação Física sem justificar. Em novembro de 1961, ao final do segundo ano na Aman, já acumulava um total de 35 dias de prisão. E era só o começo. Ao longo da vida, principalmente depois de abandonar a caserna, sua rotina seria pontuada por temporadas de prisão. Foi após voltar das primeiras férias, no começo de 1961, que Guimarães teve de definir a carreira militar. O rito de passagem aconteceu no dia 17 de fevereiro, na Cerimônia de Escolha da Arma e do Serviço da Aman. Os cadetes aguardavam em forma a chamada pelo nome. A ansiedade era grande. Cada uma das mesas à frente representava uma Arma ou Serviço. Ao ser cha- mado, o cadete se dirigia a uma delas para escrever seu nome na lista que ficava aberta enquanto houvesse vaga disponível. A chamada obedecia às notas tiradas no curso básico. Guimarães esperava a sua vez. Quando chegou, não houve como esconder um travo de amargura. Como somara 38,238 pontos no primeiro ano, portanto abaixo da média, ficou sem opções e acabou classi- ficado no Serviço de Intendência, responsável pelas atividades de suprimento (alimentos, fardamento e equipamento), transporte de pessoal, lavanderia, sepultamento, administração financeira e controle interno, longe do sonho de todo cadete: compor das fileiras da Cavalaria, Artilharia ou Infantaria. O conhecimento obtido na Intendência, contudo, seria fun- damental na futura ascensão civil de Guimarães. Declarado aspirante em dezembro de 1962, concluiu a Aman em 15º lugar entre os 69 da turma de Intendência. Além da solenidade com

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Jango, houve missa de ação de graças, no dia 23 de dezembro, na Candelária, e o grande baile de formatura, no mesmo dia, no Copacabana Palace.

Guimarães e o nefasto comunismo

A assinatura do ato de conclusão do curso de Guimarães foi do general Emílio Garrastazu Médici, que assumiu o comando da Aman no início de 1963. Guimarães convivera com o oficial, subcomandante da academia entre 1960 e 1961, mas não chegou a vê-lo na chefia. Naquele tempo, estava de malas prontas para Bagé (RS), onde teria o seu primeiro posto como aspirante, no 12º Regimento de Cavalaria, unidade do III Exército (tropas do Sul). A essa altura, o general Jair Dantas Ribeiro já ocupava o Minis- tério da Guerra do governo Goulart e o caldeirão da crise estava prestes a entornar. Os quartéis eram focos de conspiração, entre os quais a Aman de Médici. Ao chegar ao Sul, para assumir a função de aprovador, almoxarife e tesoureiro (cargos próprios do intendente) do Regimento, vinculado ao III Exército, Guimarães era um jovem impregnado pela retórica do “perigo comunista” pregado em sala de aula. A transferência para o Sul lapidou-lhe a paranoia. Promovi- do a segundo-tenente em agosto de 1963, Guimarães, enquanto cuidava da burocracia do quartel, incluindo a administração do centro social, via subordinados se insurgirem contra oficiais. No fim do ano, receberia elogios dos chefes pela “capacidade de trabalho, dedicação, lealdade e operosidade”, mas o clima político o inquietava. Os militares haviam abafado, em setembro, uma rebelião de seiscentos cabos, sargentos e suboficiais em Brasília. Os revoltosos

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do governo, o último ministro da Guerra de Jango foi afastado da pasta e, em junho de 1964, teve seus direitos políticos cassados pelo Ato Institucional nº 1, então transferido à reserva. As férias suspensas valeriam a Guimarães mais dois elogios. Um deles, de Costa e Silva, então ministro da Guerra do governo Castelo Branco, pelas “magníficas demonstrações de lealdade e patriotismo ante a difícil emergência que acaba de atravessar a nação”. O outro destacou o seu papel na “defesa dos princípios democráticos que sempre armaram a pátria brasileira, banindo de nossa terra o nefasto comunismo, demonstrando com isso elevado espírito de brasilidade que muito contribuiu para a sal- vaguarda das instituições do país”. Guimarães iniciava ali sua guerra particular contra a subversão.

Vila Militar, o laboratório da guerra suja

Guimarães só ficaria mais um ano no Sul. No primeiro semestre de 1966, já primeiro-tenente, estava de volta à cidade natal, para apresentar-se, depois de uma rápida passagem pela 1ª Companhia Depósito de Subsistência, à 1ª Companhia Independente da Polícia do Exército (PE), na Vila Militar. Na época, o complexo represen- tava a maior concentração militar da América Latina. E a PE, a quem cabia garantir a lei e a ordem na tropa, iria se notabilizar muito mais pelo tratamento oferecido aos civis incômodos. A companhia da PE era, naquela altura, um laboratório da guerra que mancharia o país dois anos depois. Sob o comando do capitão José de Ribamar Zamith, fervoroso integrante do Movimento Anticomunista, uma tropa de 240 homens trincara os dentes para consolidar a “Revolução Redentora” nos grotões da Região Metropolitana do Rio. Era preciso limpar a área. Um

OS PORÕES DA CON TR AV ENÇÃO

dos alvos era o trabalhismo de Getúlio Vargas, ainda forte nas cidades-dormitório da Baixada Fluminense. O outro, pequenos traficantes que vendiam drogas para os soldados. Com os traficantes, o tratamento de costume. Para blindar a Vila, a tropa juntou a truculência castrense ao modelo pau de arara da polícia velha de guerra da região, ligada a grupos de extermínio. Oficiais passaram a circular com desenvoltura pelas delegacias. Para os trabalhistas, o arbítrio. A abertura de inquéritos sumários, sem direito ao contraditório, tentou varrer do mapa o getulismo residual, com muitos de seus quadros acusados pelo regime de desvio de recursos públicos e de outras formas de corrupção e clientelismo. Porém, o enfrentamento mais violento estava por vir. Uma sé- rie de acidentes ferroviários e atrasos constantes nos horários de pico das estações da região acendera a luz vermelha no gabinete do general Adalberto Pereira dos Santos, então comandante do I Exército (tropas do Rio de Janeiro). Em março de 1965, um trem cargueiro descarrilou em Comendador Soares, Nova Iguaçu, atingiu um poste e derrubou a estrutura metálica que sustentava a sinalização sobre um trem de passageiros. O acidente causaria vinte mortes e deixaria mais de cinquenta feridos.^16 Embora reinassem a negligência e a precariedade no sistema ferroviário do Grande Rio, os militares preferiram culpar os co- munistas. Desconfiavam de que os eventos não fossem obra do acaso, muito menos decorrentes de falha humana provocada por maquinistas cansados e despreparados. A descoberta de que dois funcionários de estações da Baixada Fluminense eram ligados ao Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) levaria o gene- ral a encarregar o capitão Zamith de uma devassa na Baixada. Logo vieram prisões arbitrárias, interrogatórios brutais e outros abusos que iniciariam a temporada de violência política na Vila Militar.