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Caminho do Artista Solitário: Século XIX à Land Art e Relação 'Isolada' com a Natureza, Notas de aula de Artes

Este texto analisa o trilho do artista solitário do século xix até a land art e a relação 'isolada' entre o artista e a natureza. O autor aborda a temática artística, cultural e estética do isolamento nas obras de artistas românticos como caspar david friedrich e vitor santos gomes. Ele discute a definição da natureza humana, a natureza desmedida e selvagem, e a importância da imaginação e da criatividade individual na arte. O texto também explora a influência da natureza na arte e na sociedade, e a evolução da pintura de paisagem no século xix.

O que você vai aprender

  • Como os pintores de Barbizon abordaram a natureza e a representaram em suas obras?
  • Qual é a evolução da pintura de paisagem no século XIX?
  • Como a natureza influencia a arte e a sociedade?
  • Qual é a importância do isolamento social e natural na obra de artistas românticos?
  • O que é a definição da natureza humana para os autores discutidos?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Reginaldo85
Reginaldo85 🇧🇷

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115 O CAMINHO DO
ARTISTA SOLITÁRIO:
DO SÉCULO XIX À
LAND ART
E A
RELAÇÃO “ISOLADA
COM A NATUREZA
Vitor dos Santos Gomes
RESUMO Este artigo é uma análise da relação
entre a temática do isolamento e as artes visuais,
do isolamento e a prática artística. Analisamos
o trilho do artista solitário, do século XIX
à Land art, e a relação “isolada” do artista com
a natureza. Trata-se de uma reflexão sobre o acto
de isolamento e a prática artística nos séculos XIX
e XX. Pretendemos pensar, interpretar e convidar
a uma reflexão sobre as diferentes dimensões
contidas na temática artística, cultural e estética
do isolamento nas artes visuais.
PALAVRAS-CHAVE Isolamento; Artes Visuais;
Paisagem; Estudos Visuais
ABSTRACT This article presents an analysis of
the relation between the subject of isolation and
visual arts, isolation and artistic practice. It traces
the path of solitary artists from the 19th century
to Land art, and the “isolated” relationship between
artists and nature. It is a reflection on the act
of isolation and artistic practice in the 19th
and 20th centuries. The aim is to think about,
interpret and invite a reflection on the different
dimensions that the artistic, cultural and aesthetic
theme of isolation comprises.
KEYWORDS Isolation; Visual Arts; Landscape;
Visual Studies
Escola de Artes, Universidade de Évora
Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes,
Universidade de Lisboa (CIEBA)
Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza. ARTE E CULTURA VISUAL N.1 2020 — Isolamento.
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115 O CAMINHO DO

ARTISTA SOLITÁRIO:

DO SÉCULO XIX À

LAND ART E A

RELAÇÃO “ISOLADA”

COM A NATUREZA

Vitor dos Santos Gomes

RESUMO Este artigo é uma análise da relação entre a temática do isolamento e as artes visuais, do isolamento e a prática artística. Analisamos o trilho do artista solitário, do século XIX à Land art , e a relação “isolada” do artista com a natureza. Trata-se de uma reflexão sobre o acto de isolamento e a prática artística nos séculos XIX e XX. Pretendemos pensar, interpretar e convidar a uma reflexão sobre as diferentes dimensões contidas na temática artística, cultural e estética do isolamento nas artes visuais. PALAVRAS-CHAVE Isolamento; Artes Visuais; Paisagem; Estudos Visuais ABSTRACT This article presents an analysis of the relation between the subject of isolation and visual arts, isolation and artistic practice. It traces the path of solitary artists from the 19th century to Land art, and the “isolated” relationship between artists and nature. It is a reflection on the act of isolation and artistic practice in the 19th and 20th centuries. The aim is to think about, interpret and invite a reflection on the different dimensions that the artistic, cultural and aesthetic theme of isolation comprises. KEYWORDS Isolation; Visual Arts; Landscape; Visual Studies Escola de Artes, Universidade de Évora Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Universidade de Lisboa (CIEBA) Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

. ARTE E CULTURA VISUAL N.1 2020 — Isolamento.

116 No começo da pandemia do novo coronavírus vimos obras de Edward Hopper e de Vilhelm Hammershøi^1 serem bastante usadas para ilustrar a solidão, uma solidão ur- bana sobre a agonia causada pelo estar só. Alguns artistas usam a solidão, seja adop- tada ou imposta, como tema das suas obras. Nas pinturas do romântico Caspar David Friedrich o homem encontra-se geralmente só numa natureza desmesurada, enquan- to outros artistas produziram efectivamente em momentos de isolamento social. A icónica artista francesa Louise Bourgeois viveu durante 15 anos num confinamento doméstico, quando se mudou para os Estados Unidos da América com o seu marido, o historiador Robert Goldwater. A artista, que sofria de ansiedade, extraía da solidão um sentimento de calmaria e segurança. «A inspiração vem do retiro»^2 , referiu certa vez. A dupla inglesa Gilbert&George criou uma actividade no Reino Unido para as pessoas fazerem o download da sua obra e colocarem nas suas janelas, como forma de provocar interacções durante o período actual de isolamento social. Don’t catch it e Don’t get it estão disponíveis gratuitamente no site www.theonlineartshow.co.uk. Já o polémico e misterioso Banksy, conhecido pelos seus trabalhos “grafitados”, esteve supostamente confinado em casa e divulgou na sua conta do Instagram uma série de fotos das obras que realizou na sua casa de banho. Não é necessário demonstrar a importância e o papel do isolamento, a sua evolu- ção e suas variações ao longo da história da arte. Igualmente curioso é verificar o modo como o tópico do isolamento se tem continuado a manifestar, ainda que de uma forma mais lateral ou menos discreta, como nos últimos tempos, no contexto de muitas ten- dências marcantes e, por vezes, mais radicais das últimas décadas. Pensamos que aqui- lo a que chamamos persistência desta temática, e a diversidade das formas que ela tem revestido no contexto das artes visuais contemporâneas e na nossa cultura, se pode relacionar com a multidimensionalidade, a versatilidade e a plasticidade do assunto. O isolamento, enquanto tema, condição social, opção de vida, situação de calamidade, apresenta uma grande diversidade de aspectos e aproximações possíveis e produtivas a partir de um ponto de vista artístico. Com a cultura iluminista, a natureza começava a ser vista não como um modelo ideal, mas como um estímulo frente ao qual o Homem reage de diversas maneiras. Para Jean-Jacques Rousseau^3 , o Homem completa-se com a natureza, portanto não é um es- tado a ser superado, como entenderam Locke e Hobbes^4. Rousseau, no Discurso sobre a 1 Pintor dinamarquês (1864-1916), ficou conhecido pelos seus retratos e pelos interiores que transmi- tem solidão. 2 BOURGEOIS, Louise - The Secret of the Cells. Ney York: Prestel, 2008, p. 168. 3 Para Rousseau (1712-1778) as instituições educativas tradicionais corrompem o Homem e tiram-lhe a liberdade. Para a criação de um novo Homem e de uma nova sociedade, seria preciso educar a criança de acordo com a natureza, desenvolvendo progressivamente os sentidos e a razão. 4 Ver RIBEIRO, Renato Janine - Hobbes: o medo e a esperança. São Paulo: Ática, 2002. Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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118 Rousseau, desde os anos 60 do século XVIII, que fazia apologia a um certo natura- lismo que influenciaria os românticos. A definição da natureza humana para o autor é um equilíbrio perfeito entre o que se quer e o que se tem. O homem natural é apenas um ser de sensações. O homem no estado de natureza deseja somente aquilo que o rodeia, por- que não racionaliza e, portanto, é desprovido da imaginação necessária para desenvolver um desejo pelo que não concebe. Estas são as únicas coisas que ele poderia “representar”. Rousseau dá à palavra “natureza” um sentido quase divino e nela encerra uma espécie de absoluto a ser buscado e seguido. Tal sentido deixa transparecer que há uma natureza da natureza, a qual até poderia ser escrita Natureza, com letra maiúscula, por coincidir com o princípio divino. Nesse sentido, haveria uma natureza absoluta (N) que gera a natureza (n) e o estado de natureza. Como força activa que estabelece e conserva a ordem de tudo o que existe (seja num sentido metafísico ou puramente científico), o seu sentido é substantivo e não meramente qualificativo, que pode ser expresso na locução adjectiva de nature. É a força de onde emana o próprio estado original e visível da ordem existente, o qual chamamos de estado natural. Assistimos assim a um novo protagonismo da pintura de paisagem. A teoria da arte em épocas anteriores tinha denegrido este género, uma vez que ele não podia sa- tisfazer as exigências clássicas concretizadas, sobretudo, pela pintura histórica. Na formação académica, este juízo viria a manter a sua validade em pleno século XIX. No entanto, já no século XVIII, quando pensadores como Rousseau, Diderot e Schiller la- mentavam o afastamento do homem da natureza, começava-se a sentir uma alteração fundamental de atitude. A atmosfera das paisagens subjectivamente sentida, impos- sível de se enquadrar dentro de regras, passava agora a ser considerada como uma qualidade por direito próprio. No romantismo, a natureza já não é a ordem revelada e imutável da Criação, mas o ambiente da existência humana; já não é o modelo universal, mas o estímulo a que cada um reage de modo diferente; já não é a fonte de todo o saber, mas o objectivo da pesquisa cognitiva. Esta será, de facto, a pedra no charco, conquistada pela cultura do Iluminismo e que se perpetua com o romantismo. A poética iluminista do pitoresco vê o indivíduo integrado no seu ambiente natural, tal como “Alice antes de passar para o outro lado do espelho”, e o outro lado será visionário, místico... Na obra, Um inquérito filosófico sobre as origens das nossas ideias do sublime e do belo^10 , publicada em 1757, Edmund Burke abre caminho a uma estética de terrores terrí- ficos e delicados. Sobre o prisma do sublime, que permitiu à estética estender-se além da categoria limitativa e formal do belo, o romantismo procede assim à exploração de um continente não propriamente novo, mas com muito ainda por desbravar. Este continente não pode ser habitado sem riscos; é o informe, o terrível, a grandiosidade sem comparação, a ameaça da morte ou a iminência do nada, que se situam no seu 10 Ver BURKE, Edmund - A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful. Oxford: Oxford University Press, 1998. Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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119 horizonte. Diante de montanhas geladas e inacessíveis, do mar selvagem, o homem não pode experimentar outro sentimento senão o seu isolamento e a sua pequenez. O sublime é visionário, angustiado. Na pintura as cores são foscas, pálidas, traços fortemente marcados, gestos excessivos, bocas gritantes, corpos eroticamente desfa- lecidos ... Os dois pilares da poética do sublime foram, para Argan, Johann Heinrich Füssli (1741-1825) e William Blake (1757-1827). «A natureza não tem contornos, mas a imaginação tem»^11 , eis a descoberta mais profunda de Blake, que o levou naturalmente para a arte gótica, que a sua imaginação contornava. O sublime surge assim ligado a um sentimento ambíguo, que é simultaneamente de dor e prazer: «As paixões que pertencem à conservação da própria vida circulam sobre a dor e o perigo (...) elas são deliciosas quando nós temos uma ideia da dor e do perigo em tais circunstâncias (...) o que quer que excita este prazer, eu denomino sublime…»^12. O belo, para Kant, nasce de uma conformidade, de uma “conveniência entre duas faculdades”: a imaginação, que é uma intuição sem conceito e o entendimento concep- tual – as ideias da razão^13. O sentimento do sublime ocorre quando existe a faculdade de apresentação conveniente de uma ideia, que foi despertada por algo incomensurável e que não admite comparação; «(…) em comparação do qual tudo o resto é pequeno»^14 , como escreve Kant. Como Argan nos diz, «(…) não mais agradável variedade, mas dis- córdia de todos os elementos de uma natureza rebelde e enfurecida; não mais sociabi- lidade ilimitada, mas angústia da solidão sem esperança»^15. O mundo clássico, recomposto contra o pitoresco rocaille , num revivalismo de empenho moral, é cedo contrariado por um renascimento de formas e de sentimentos de uma psicologia inquieta, atenta a íntimos rumores e capaz de os inventar. O pito- resco psicológico invade a arte, já não para agrado dos sentidos, mas para tortura das almas; para pontes espirituais poéticas. O culto da paisagem tende para situações extremas. O campo burguês dos ho- landeses cobre-se de céus tempestuosos, uma ameaça paira, a natureza é equívoca ou ilusória. Os fenómenos físicos ganham um sentido que é legível poeticamente, em ter- mos de meditação sobre-humana ou sobrenatural; as ruínas passam a ser símbolos de 11 Apud RAINE, Kathleen - William Blake. Oxford: Oxford University Press, 1970, p. 68. 12 BURCKE, Edmund - A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful. Op. cit ., p. 38. 13 Metade da Crítica da faculdade de julgar (1790), de Kant, obra que constitui o culminar do percurso iniciado com A crítica da razão pura , é consagrada ao problema do juízo estético. Este último é de- composto por Kant em quatro “momentos”. O gosto que Kant menciona consiste na faculdade de julgar o belo, quer se trate do belo natural ou do belo artístico. A sua concepção do objecto belo é indeterminista. Kant desvaloriza, assim, o belo “artificial” face ao belo “natural”, na medida em que este último quase sempre desperta um interesse moral. 14 KANT, Emmanuel - O belo e o sublime (ensaio de estética e moral). Porto: Livraria Educação Nacional, 1943, p.35. Vitor dos Santos Gomes, 15 ARGAN, Giulio Carlo - Arte moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Op. cit ., p. 19. O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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121 E espelha da forma distintiva como Friedrich tratava as convenções paisagísticas. Usou-as para estimular a reflexão sobre a dinâmica da cognição humana, um projecto análogo às convenções filosóficas de Johann Gottlieb Fichte, um dos criadores do movi- mento filosófico do Idealismo Alemão, que se desenvolveu a partir dos escritos teóricos e éticos de Immanuel Kant. Nas mãos de Friedrich, a alta tensão formal presente entre as imagens do primeiro plano e as que sobressaem no plano de fundo serve para evocar o jogo enigmático entre a vida interior e o mundo exterior, entre o eu e o colectivo. Os seus quadros mostram muitas vezes figuras vistas de trás, um processo que simultaneamente facilita e frustra a entrada psicológica do observador na imagem re- tratada, na verdade reinterpretando o afastamento do mundo natural que, de acordo com os filósofos idealistas germânicos, é uma pré-condição da autoconsciência huma- na. Na pintura A árvore solitária (1922, Der einsame Baum ) , uma das obras importan- tes de Caspar David Friedrich, podemos observar uma árvore isolada, numa paisagem onde o silêncio reina, que pode ser interpretado como um símbolo da solidão histórica humana e da futilidade do esforço humano perante as forças eternas da natureza. Entretanto, o cenário do desenvolvimento da pintura de paisagem muda-se para França. Foi nesta altura que o estatuto da pintura de paisagem começou a mudar. Esse “novo” estava no tratamento naturalista dos estudos, que estes pintores não hesitaram em adoptar para a própria pintura, deixando-se levar pelo sentimento que lhes inspi- rava a natureza, o isolamento do artista nessa natureza, e abrindo caminho a toda uma geração de independentes que se congrega em Barbizon. As suas experimentações aproximavam-se, de certa forma, daquelas que, pela mesma altura, propunham os pai- sagistas ingleses, cujos trabalhos passam a ser bastante conhecidos e, inclusivamente, a fazer parte das colecções francesas. A paisagem só tardiamente se tornou numa preocupação central dos pintores franceses do século XIX, mas teve um impacto gigantesco, que irá contribuir para a grande viragem da arte moderna nas últimas décadas do século XIX, em França, e con- sequentemente em toda a arte ocidental. A partir de 1830 desenvolve-se em França a “escola” paisagista dita de Barbizon, nome de uma aldeia na orla da floresta de Fontainebleau, para onde alguns jovens pintores, tendo à frente Théodore Rousseau, se haviam retirado com intuito de renovar a pintura de paisagem, abandonando todas as convenções e regras, vivendo no campo isolados, estudando assiduamente os as- pectos mutáveis da natureza e da luz. Os principais elementos do grupo são Théodore Rousseau, Jean-François Millet, Diaz De La Peña, Charles Daubigny, Jules Dupré e Constant Troyon. A pintura de paisagem já tinha tradição em França, com Poussin, Claude Lorrain e Georges Michel, que transmitiam nos seus quadros um estado de sensibilidade particular, talvez poética. Quando falamos em natureza queremos dizer o mundo visível das aparências, mas quando assim definimos a palavra não estaremos a simplificar o problema das relações do artista com a natureza? Observamos a pintura de paisagem e temos assim dois problemas a considerar. Em primeiro lugar, qual a distinção entre a arte e natu- Vitor dos Santos Gomes, reza? Existe alguma diferença essencial entre a beleza da paisagem em si e a beleza O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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122 representada pelo artista no seu quadro dessa mesma paisagem? Em termos mais sim- ples podemos dizer que o artista ao pintar uma paisagem não tenciona descrever a aparência visível da paisagem, mas dizer-nos qualquer coisa acerca dela. Essa qualquer coisa pode ser uma observação ou emoção que partilhamos com o artista, mas, com mais frequência, é uma descoberta original do artista que ele nos quer comunicar. Quanto mais original for essa descoberta maior crédito nos merecerá o artista, pressupondo sempre que ele tem suficiente mestria técnica para tornar essa comunicação clara e eficaz. O que será, então, que o artista descobre na natureza e que só ele é capaz de comunicar ao mundo? Será esta procura de uma nova observação da natureza, e uma nova comunicação do artista com a paisagem, que os pintores de Barbizon vão procurar captar. Estes pintores de Barbizon surgem como “a imagem” do artista “moderno”, que enfrenta a realidade de modo directo, livre de esquemas pré-concebidos. A novidade da técnica rápida, larga, brilhante, resoluta, é tão precisa que dá a impressão de se distingui- rem as folhas de árvore, onde um olhar mais atento apenas vê manchas coloridas. Porém, como escreve Argan, como explicar o facto de essa mancha, mesmo não descrevendo nada, dizer tudo, até a forma, a luz e a força dos ramos e das folhas? Argan, dá-nos a resposta: «(…) essa mancha faz com que reconheçamos a árvore: não fornece uma noção, mas evoca uma experiência que está em nós, na nossa memória. A mancha, em si, não representa senão a impressão súbita experimentada diante do verdadeiro, numa condi- ção específica de lugar, tempo, luz; todavia, como a emoção acciona a nossa memória, a percep ção em si, instantânea e superficial, adquire uma profundidade psicológica »^18. Os pintores de Barbizon, e Rousseau em particular, especificam em que consiste o conhecimento da natureza proporcionado pela emoção; evidentemente não é um co- nhecimento objectivo, científico, mas «(…) as vozes das árvores, as surpresas dos seus movimentos, a variedade das suas formas, até a singularidade dos modos como são atraídos pela luz»^19. A cada escolha corresponde uma recusa, com um gesto caracterís- tico do romantismo: é o ambiente artificial da cidade. Ao propor estudar a “psicologia” das árvores ou das nuvens, os pintores buscam assim um clima cultural romântico, e um tema fundamental da poética inglesa do pitoresco. Os pintores de Barbizon empe- nham-se agora em salvar esse valor que sentem traído pela nova ordem da sociedade e pela industrialização cada vez mais generalizada, mostrando-o como insubstituível: é o sentimento da natureza. A paisagem “extingue-se” no século XX, a obra de arte passa a ser pensada mais a nível mental (Picasso dizia que pintava as formas como as pensava e não como as via^20 ) e emocional, do que ao nível da realidade dos fenómenos concretos da natureza, nas 18 ARGAN, Giulio Carlo - Arte moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Op. cit ., p. 60. 19 Idem , ibidem , p. 61. 20 Ver FITZGERALD, Michael C_. - Making Modernism: Picasso and the Creation of the Market for Twenti- eth-Century Art_. Berkeley: University of California Press. 1996. Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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124 O surgimento de estratégias políticas ambientalistas, feministas e de minorias contemporâneas encorajou formas de arte intensamente políticas e assentes na indi- vidualidade do artista com a paisagem. A ampla gama de obras executadas na paisa- gem transmitiu um desafio programático à ortodoxia social por meio da actividade do objecto artístico inserido na paisagem, virtualmente sem paralelo no século XX. Tal como os pintores de Barbizon fugiram para a floresta para poder sentir e representar a natureza à sua volta os artistas da Land art procuraram lugares isolados na natureza para intervir no próprio “corpo” dessa paisagem. Na realidade, assistimos à cartografia de praticamente de todos os recantos da terra e à confluência dos progressos tecnológicos e científicos da industrialização, em grande escala, assim como o urbanismo triunfante e os meios de transporte e comu- nicação cada vez mais bem-sucedidos. A massificação sem precedentes da produção e do consumo, com o fascínio crescente das utopias tecnicistas e o mundo artificial construído por e para o homem é avaliado como único meio digno e adequado às suas novas condições de vida. E assim a natureza e a paisagem no século XX mais não são que objectos passíveis de ser manipulação, numa perspectiva utilitarista: uma e outra reduzidas à ocupação, à exploração, à regulação, a espaços de lazer ou de poder, destinadas a adaptar-se e a satis- fazer as exigências ilimitadas e as necessidades, muitas das vezes fabricadas, do homem contemporâneo. Falar da paisagem do século XX é, antes de mais, verificar, se não a sua ausência, pelo menos a sua colocação a saque. O exemplo mais sintomático desta perda é precisamente o facto de a noção de património, a partir dos anos 60, ter sido alargada a áreas geográficas (a necessidade de preservar certos sítios naturais, revela que os estamos a perder, relíquias de um mundo perdido, devorado pelo tempo e pela técnica humana). Mesmo a Land art , que revelava um desafio subliminar à inevitabilidade de uma realidade desencantada e desenraizada, pode ser considerada por alguns um engodo: não é um sinal de um regresso à paisagem, antes é a sua negação, pois, na sua maior parte, trata-se de cenários fora do alcance humano a que só se tem acesso através de fotografia e/ou de vídeos, estando, por isso, mais ocupada a redesenhar as fronteiras da arte do que a exaltar a natureza. Mas, por um lado, a Land art pode levar-nos aos primórdios da arte, ou da paisagem oitocentista, e desviar-nos a atenção para proble- mas tão actuais como a precariedade dos recursos naturais, convidando-nos, “impera- tivamente” a assumir a nossa pequenez face à grandiosidade da natureza. Em suma, este movimento, desprovido de uma essência canónica, dá-nos a liber- dade de lhe podermos atribuir a nossa própria essência. Como afirmou Richard Long no âmbito da Documenta 7 (Kassel, 1982) «A minha arte é o meu trabalho por toda a vastidão do mundo, em qualquer lugar da superfície da terra. A minha arte possui as temáticas dos materiais, das ideias, do movimento, do tempo. A beleza dos objectos, dos pensamentos, dos lugares e das acções. O meu trabalho trata dos sentidos, do meu ins- tinto, da minha própria escala e do meu próprio empenhamento físico. O meu trabalho é real e não ilusório ou conceptual. Trata das obras verdadeiras, do tempo verdadeiro e das acções verdadeiras»^23. Vitor dos Santos Gomes, O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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125 A Land art inaugura uma nova relação com o ambiente natural. A paisagem já não é representada pictoricamente nem é um manancial de forças passível de expres- são plástica, a natureza passa a ser o lugar onde a arte se enraíza, onde o isolamento hu- mano é assinalado na própria terra. O espaço físico – desertos, lagos, canyons , planícies e planaltos – apresentam-se como campo onde os artistas realizam intervenções, como Spiral Jetty , que Robert Smithson constrói sobre o Grande Lago Salgado, em Utah. Será preciso esperar pelo fim dos anos 70, com os movimentos ecológicos e as manifestações contra a indiscutível má gestão da natureza, que os artistas vão regis- tar, fotógrafos na maior parte, como o próprio Smithson, pois a sua arte é fundada não na natureza mas na sua desnaturação, o que lhe interessa é a entropia. Mas também Lewis Baltz, nas suas fotografias de Park city (1978-1981), nas quais vemos a indústria a transformar o terreno para a construção de casas de fim-de-semana, outra invenção do século XX; Sophie Ristelhueber fotografa paisagens em crise, corpos (porque um corpo também é paisagem) ou lugares manipulados, marcados, sacrificados; ou Tony Smith. A estes nomes havia que juntar Christo, Richard Long e Hamish Fulton, que, embora noutra perspectiva, vão também intervir na paisagem. Estes artistas vão regressar, de certa forma, ao sur le motif : montanhas esventra- das, descargas, terrenos baldios, subúrbios decrépitos e abandonados, cidades desola- das e destruídas pela guerra, auto-estradas, ou outras marcas humanas modernas ou antigas, como objectos da nova paisagem; num olhar factual, objectivo, sem sentimen- talismo nem nostalgia, mas sempre um olhar isolado. É toda uma iconografia do ho- mem e da sua relação com a natureza que se apresenta perante nós, herdada da pintura de paisagem do século XIX, mas também da fotografia, do fotojornalismo. As paisagens de hoje podem ser consideradas anti-paisagens , entrópicas, em ruí- nas, decadentes, torturadas e que, idênticas por todo o planeta, oferecem a mesma vista fúnebre, feito cemitério de signos; signos que testemunham a nossa intervenção (polí- tica é claro), sobre ela, da qual é banida qualquer promessa de reconciliação e harmonia entre natureza e homem. No fundo é o que Freud teorizou como repulsa originária – o homem está dividido contra si próprio e os conflitos inconscientes exprimem-se em pensamentos e actos que parecem irracionais – e que Heidegger entendia como con- tracção pela violência^24. Posto isto, os artistas quando se interessam pela paisagem contentam-se em con- denar os excessos, mas na maioria dos casos sem nunca fazer referência explícita a uma natureza estilhaçada, fragmentada, isolada tal como o homem. É que já não é possível representar uma paisagem inocente numa sociedade alienada, cujas fantasias políticas se lhe colaram, dela se apoderam, refizeram-na, adaptaram-na às suas necessidades^25. E a 23 LONG, Richard - Documenta 7. Kassel, 1982, p. 78. [Catálogo da exposição]. 24 Ver HEIDEGGER, Martin - Identity and Difference. New York: Harper & Row, 1969. 25 Ver WARNKE, Martin – Political Landscape: the Art History of Nature. Cambridge: Harvard Universi- Vitor dos Santos Gomes, ty Press, 1995. O caminho do artista solitário: do século XIX à Land art e a relação “isolada” com a natureza

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