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Reflexões sobre o Gênero de Horror: Aristotélicas, Burkeanas e Lovecraftianas, Notas de aula de Cálculo

Este documento explora as raízes filosóficas do gênero de horror, identificando pressupostos aristotélicos, burkeanos e lovecraftianos na reflexão crítica sobre a narrativa ficcional de horror. Os autores discutidos, como horace walpole, edgar allan poe e h.p. Lovecraft, são analisados em relação às suas teorias sobre a produção do medo e sua legitimação estética. O texto também aborda as questões de por que as pessoas se interessam pelas narrativas de horror e por que criar horrores ficcionais em um mundo cheio de horrores reais.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Gisele
Gisele 🇧🇷

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“Terror”, “Horror” e “Repulsa”: Stephen King e o cálculo da recepção.
Júlio FRANÇA*
Resumo: As reflexões críticas sobre a narrativa de horror desenvolvidas por ficcionistas
do gênero como H. Walpole, E. A. Poe e H. P. Lovecraft revelam uma filiação a
dois eixos tradicionais dos Estudos Literários. São tributárias, por um lado, do
pensamento aristotélico, no que tange à preocupação com a produção de determinados
efeitos de recepção fundamentalmente, o medo e suas variações. Por outro lado,
justificam o porquê de se buscar a elaboração do medo com especulações de caráter
estético muito aproximadas das investigações de Edmund Burke sobre o Sublime e o
Belo.
Neste ensaio, pretendo demonstrar que o ficcionista contemporâneo Stephen
King continuidade a essa tradição. Para tanto, procuro identificar pressupostos
aristotélicos e burkeanos em suas considerações a respeito da narrativa de horror.
Palavras-chave: Literatura de Horror; Stephen King; Aristóteles; Edmund Burke.
Introdução
Naquele que é um dos primeiros estudos sistemáticos sobre a literatura, a
Poética, de Aristóteles, a criação literária é pensada por uma perspectiva que privilegia
os efeitos de recepção. A própria definição aristotélica de tragédia, que introduz nos
Estudos Literários o conceito de catarse, categoriza o gênero em função da produção e
da “purificação” de emoções. Do mesmo modo, elementos estruturais do discurso
mimético, como o reconhecimento, a peripécia e a catástrofe, são todos avaliados em
relação às sensações que podem suscitar no receptor – entre elas, vale lembrar, o phóbos
(medo).
A reflexão crítica sobre a narrativa ficcional de horror tem, de modo mais ou
menos consciente, assumido essa orientação aristotélica. Horace Walpole, Edgar Allan
Poe e H. P. Lovecraft estão entre aqueles que concebem a obra literária de horror como
um artefato produtor de uma emoção específica: o medo e suas variações (cf. FRANÇA:
2008). Tal descrição é, contudo, de caráter puramente formal. Aponta os objetivos do
gênero, mas não os justifica, isto é, não legitima, esteticamente, a produção do medo.
H. P. Lovecraft encontrou um caminho para essa legitimação, ao propor que a
mais antiga e intensa emoção experimentada pelo ser humano é o medo, e sua forma
mais antiga e intensa é a do medo do desconhecido (LOVECRAFT: 1973, p. 12) – trata-
* Doutor em Literatura Comparada (UFF).
Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ)
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“Terror”, “Horror” e “Repulsa”: Stephen King e o cálculo da recepção. Júlio FRANÇA* Resumo : As reflexões críticas sobre a narrativa de horror desenvolvidas por ficcionistas do gênero – como H. Walpole, E. A. Poe e H. P. Lovecraft – revelam uma filiação a dois eixos tradicionais dos Estudos Literários. São tributárias, por um lado, do pensamento aristotélico, no que tange à preocupação com a produção de determinados efeitos de recepção – fundamentalmente, o medo e suas variações. Por outro lado, justificam o porquê de se buscar a elaboração do medo com especulações de caráter estético muito aproximadas das investigações de Edmund Burke sobre o Sublime e o Belo. Neste ensaio, pretendo demonstrar que o ficcionista contemporâneo Stephen King dá continuidade a essa tradição. Para tanto, procuro identificar pressupostos aristotélicos e burkeanos em suas considerações a respeito da narrativa de horror. Palavras-chave : Literatura de Horror; Stephen King; Aristóteles; Edmund Burke. Introdução Naquele que é um dos primeiros estudos sistemáticos sobre a literatura, a Poética , de Aristóteles, a criação literária é pensada por uma perspectiva que privilegia os efeitos de recepção. A própria definição aristotélica de tragédia, que introduz nos Estudos Literários o conceito de catarse , categoriza o gênero em função da produção e da “purificação” de emoções. Do mesmo modo, elementos estruturais do discurso mimético, como o reconhecimento , a peripécia e a catástrofe , são todos avaliados em relação às sensações que podem suscitar no receptor – entre elas, vale lembrar, o phóbos (medo). A reflexão crítica sobre a narrativa ficcional de horror tem, de modo mais ou menos consciente, assumido essa orientação aristotélica. Horace Walpole, Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft estão entre aqueles que concebem a obra literária de horror como um artefato produtor de uma emoção específica: o medo e suas variações (cf. FRANÇA: 2008). Tal descrição é, contudo, de caráter puramente formal. Aponta os objetivos do gênero, mas não os justifica, isto é, não legitima, esteticamente, a produção do medo. H. P. Lovecraft encontrou um caminho para essa legitimação, ao propor que a mais antiga e intensa emoção experimentada pelo ser humano é o medo, e sua forma mais antiga e intensa é a do medo do desconhecido (LOVECRAFT: 1973, p. 12 ) – trata-

  • Doutor em Literatura Comparada (UFF). Professor Adjunto de Teoria da Literatura (UERJ)

se de uma reflexão de caráter burkeano, muito embora não haja nenhuma menção explícita a Edmund Burke no ensaio Supernatural Horror in Literature. Na concepção do ficcionista norte-americano, a narrativa de horror sobreviveria e se desenvolveria justamente por estar associada a mecanismos profundos e fundamentais do ser humano. Ainda que admitisse que os temas corriqueiros do dia-a-dia dominassem a maior parte da experiência humana, Lovecraft acreditava que mesmo nos indivíduos mais racionais residiria uma herança biológica capaz de ser tocada pelas narrativas que inspiram medo. Também burkeana é a idéia de que o ser humano recordar-se-ia mais facilmente da dor e da ameaça da morte do que do prazer. Para Lovecraft, as sensações relacionadas aos aspectos positivos das crenças em elementos sobrenaturais teriam sido, desde o início da humanidade, capitalizados e formalizados pelos rituais religiosos convencionais. Já os aspectos mais sombrios e malignos dos mistérios cósmicos acabaram sendo encampados pelas narrativas populares e folclóricas. Principais combustíveis dessas narrativas, a incerteza e o perigo seriam, sob o ponto de vista lovecraftiano, aliados: o que é desconhecido acaba sendo visto como uma fonte de possibilidades perigosas e malévolas. A combinação entre a curiosidade, a sensação do perigo, a intuição do mal e a inevitável fascinação do maravilhoso possuiria uma vitalidade inerente à própria raça humana. Por essa razão, a literatura que consegue despertar aquilo que Lovecraft chamou de “ cosmic fear ” (ibidem, p. 15) sempre existiu e sempre existirá. Neste ensaio, proponho uma leitura de Danse Macabre – livro em que Stephen King reúne uma série de ensaios a respeito de suas idéias sobre o fenômeno do horror, na literatura e em outras formas midiáticas, como o cinema, a televisão, o rádio, revistas em quadrinhos etc. – que ressalte tantos os aspectos aristotélicos e poeanos quanto os burkeanos e lovecraftianos da reflexão do ficcionista norte-americano, demonstrando, desse modo, sua filiação ao que gostaria de chamar de tradição crítica dos ficcionistas de horror. A “Dança da Morte” Duas questões, ambas de caráter um tanto paradoxal, motivam Stephen King em Danse Macabre : (i) por que as narrativas que lidam com o horror e com o medo atraem as pessoas? (ii) por que, em um mundo tão repleto de horrores reais, criar horrores

A justificativa de King para a legitimidade das narrativas de horror – a proposição de que produziriam uma afecção de origens ancestrais no homem, o medo – coaduna-se, pois, com o pensamento lovecraftiano e seu fundamento estético, a teoria burkeana do sublime. Resta-nos agora demonstrar como o pensamento de King conforma-se ao outro eixo da tradição crítica do horror, o aristotélico-poeano. Catarse e Verossimilhança dos “Horrores de Mentira” A segunda questão enfrentada por King em Danse Macabre permanece, porém, sem uma resposta plenamente satisfatória: por que alguém se interessaria pelas narrativas ficcionais de horror, isto é, por que leitores e espectadores optam por vivenciar, no plano da ficção, situações e emoções que, em suas vidas “reais” elas evitariam? King faz questão de acentuar o caráter ficcional das narrativas de horror, isto é, deixa claro que o gênero lida com “horrores de mentira”. O ensaísta procura explicar a lógica da narrativa de horror através de um conceito aristotélico – o de catarse. O processo catártico possibilitaria extravasar, através do medo produzido pela narrativa ficcional, os pavores associados ao horror real – aquele relacionado às condições de existência e de sobrevivência do ser humano: (…) we make up horrors to help us cope with the real ones. With the endless inventiveness of humankind, we grasp the very elements which are so divisive and destructive and try to turn them into tools – to dismantle themselves. The term catharsis is as old as Greek drama (…) but it still has its limited uses here (ibidem, p. 12)^2. A ficção de horror, ao conduzir o leitor em direção a desfechos narrativos que apresentam algum tipo de suspensão dos horrores representados, amenizaria, ainda que por um curto tempo, nossos medos mais profundos – e reais. Para King, grande parte da atração exercida por tais narrativas residiria nos sentimentos de reintegração e de re- harmonização que poderiam brotar, paradoxalmente, de um gênero especializado em morte, medo e monstruosidades (ibidem, p. 14). (^2) “(...) nós inventamos horrores para nos ajudar a suportar horrores verdadeiros. Contando com a infinita criatividade do ser humano, nos apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los em ferramentas – para desmantelar esses mesmos elementos. O termo catarse é tão antigo quanto o drama na Grécia (...), mas, mesmo assim, ele ainda tem seu uso (...)” (KING: 2007, p. 24).

Uma outra categoria aristotélica, a verossimilhança , tem papel importante na reflexão de King. Ao defender que a construção de uma narrativa verossímil é decisiva para a produção dos efeitos do horror, ele alerta que o ficcionista precisa reconhecer, em seu público, quais são os parâmetros de aferição da realidade e os termos de aceitação do pacto ficcional. O conjunto de crenças de uma sociedade dá forma a esses parâmetros, que se transformam tanto no tempo quanto no espaço. Porém, é somente respeitando tais padrões que o escritor de horror obterá sucesso, ou seja, conseguirá produzir o medo em seu leitor. O ficcionista de horror teria a árdua tarefa de sobrepujar o “ ossified shield of racionality ” (ibidem, p. 89), o inflexível escudo da racionalidade em seu leitor, para obter, nos termos de S. T. Coleridge, a “suspensão voluntária da descrença” (ibidem, p. 99). A descrença, entretanto, não seria algo que se possa afastar com um mínimo de esforço – assim acredita King. Nas narrativas de horror, a verossimilhança seria produzida menos pela aceitação “voluntária” do pacto funcional, por parte do leitor, e muito mais por um trabalho do escritor em atingir os “ phobic pressure points ”. Em outras palavras, a suspensão da descrença na recepção se daria por um modo muito mais “involuntário”: a narrativa conseguiria fazer com que o leitor simplesmente perdesse o controle racional sobre sua imaginação. É nesse sentido que se pode entender por que King acredita que as crianças sejam a audiência perfeita das narrativas de horror. A fragilidade física e emocional no período da infância faz com que tudo lhes seja potencialmente assustador: nessa fase do desenvolvimento, os seres humanos são profundamente dependentes de outras pessoas. Para o ensaísta, essa sensação de falta de controle sobre suas próprias vidas, experimentada continuamente pelas crianças, seria similar ao desconforto que um adulto pode sentir na condição de passageiro de um avião: não se trata tanto de uma desconfiança quanto à segurança do transporte mas, fundamentalmente, um efeito da incômoda percepção de que, na circunstância de algum imprevisto, de algum acidente, não há nada que se possa fazer. Conduzir um adulto de volta a este estado de “falta de controle” seria, portanto, a meta de sucesso do ficcionista de horror (ibidem, p. 102-3). Os três níveis do medo King compreende ainda a narrativa de horror a partir de uma não-explicitada

Por Horror , King compreende um tipo de efeito menos refinado do que o Terror. Não consistiria exclusivamente em um processo mental mas geraria também uma contrapartida sensível. Tratar-se-ia, portanto, de uma percepção mista, provocada pelo entendimento de que algo está “fisicamente errado” (KING: 1983, p. 21-2). A contemplação de monstruosidades, anormalidades ou de eventos sobrenaturais seriam causas potenciais do horror. Por fim, o efeito de Repulsa , refere-se às sensações produzidas pela contemplação de seres ou de cenas perturbadoras, que provocam algum tipo de repugnância (KING: 1983, p. 23). Trata-se do nível mais explícito e suas causas podem ser encontradas em coisas que são convencionalmente entendidas como repulsivas – aquelas que provocam um mal-estar físico e as que provocam algum tipo de indignação moral, por ferirem os bons costumes, ou mesmo o bom senso. A poética de King Ainda que em diversas passagens de Danse Macabre aventure-se por “interpretações” – alegóricas, sociológicas, psicanalíticas, políticas – das histórias de horror, Stephen King reflete sobre a narrativa de horror a partir do que entende ser seu aspecto essencial: produzir medo. Tanto que elege uma narrativa oral urbana – a que se refere como “ Tales of the Hook ” – como o mais básico e eficiente enredo de horror que conhece: um jovem casal namora dentro de um carro, em algum ponto ermo da cidade. Ouvem, pelo rádio, que um maníaco homicida fugiu do manicômio. Seu apelido é “Gancho”, em virtude do afiado instrumento que carrega em uma das mãos – e com o qual degola suas vítimas. Assustada, a garota tenta convencer o namorado a voltarem para casa. Ele reluta até que ouvem um barulho do lado de fora do automóvel – como se houvesse alguém se aproximando na escuridão. Assustado, o jovem acelera e eles partem em alta velocidade. Quando chegam à casa da jovem, descobrem um gancho preso à maçaneta do carro... King considera que a história representa a essência da narrativa de horror: não faz caracterizações psicológicas, não tematiza questões existenciais, não aspira a nenhum ideal estético, não tenta sintetizar sua época, o pensamento ou o espírito humano. Para encontrar tais coisas, ironiza King, deveríamos recorrer à alta literatura. Sua exemplaridade vem do fato de ser despida de tudo o que é meramente acessório na

narrativa ficcional de horror. A história do Gancho existe por uma única e simples razão: a de produzir medo. Nesta leitura que propus de Danse Macabre , procurei identificar uma espécie de poética de Stephen King. A tarefa nem sempre foi simples, tendo em vista que seu método argumentativo se dá muito mais através de comentários sobre as (inúmeras) obras que compõem seu cânone particular do que por definições. Ainda assim, creio que tanto os fundamentos aristotélicos quanto os burkeanos de sua reflexão tenham sido revelados, demonstrando, desse modo, a sua filiação ao que talvez possamos chamar de tradição crítica dos ficcionistas de horror. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Tradução, comentários e índices analítico e onomástico de Eudoro de Souza. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. BURKE, Edmund. A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful. New York: Oxford University Press, 1990. DANCE OF THE DEATH. In: Merriam-Webster’s Encyclopedia of Literature. Springfield, MA: Merriam-Webter Inc., 1995. FRANÇA, Julio. O horror na ficção literária; reflexão sobre o "horrível" como uma categoria estética. In:___. Anais do XI Congresso Internacional da Abralic. São Paulo, 2008 [no prelo]. LOVECRAFT, Howard Phillips. Supernatural Horror in Literature. New York: Dover,

KING, Stephen. Dança macabra ; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. _____. Danse Macabre. New York: Berkley Books, 1983. POE, Edgar Allan. Poems and Essays. London: Dent, New York: Dutt; 1977.