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1 dois perdidos numa noite suja plínio marcos ..., Notas de estudo de Direito

NUMA NOITE SUJA. PLÍNIO MARCOS. PERSONAGENS. TONHO. 'PACO. CENÁRIO: Page 2. 2. Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se vêem duas camas bem ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pernambuco
Pernambuco 🇧🇷

4.2

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DOIS PERDIDOS
NUMA NOITE SUJA
PLÍNIO MARCOS
PERSONAGENS
TONHO
PACO
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DOIS PERDIDOS

NUMA NOITE SUJA

PLÍNIO MARCOS

PERSONAGENS

TONHO

‘PACO

CENÁRIO:

Um quarto de hospedaria de última categoria, onde se vêem duas camas bem velhas, caixotes improvisando cadeiras, roupas espalhadas etc. Nas paredes estão colados recortes, fotografias de time de futebol e de mulheres nuas.

I ATO

Primeiro Quadro

(Paco está deitado em uma das camas. Toca muito mal uma gaita. De vez em quando, pára de tocar, olha para seus pés, que estão calçados com um lindo par de sapatos, completamente em desacordo com sua roupa. Com a manga dó paletó, limpa dos sapatos. Paco está tocando, entra Tonho, que não dá bola para Paco. Vai direto para sua cama, senta-se nela e, com as mãos, a examina.)

TONHO

Ei! Pára de tocar essa droga. (Paco finge que não houve.) TONHO (Gritando.) Não escutou o que eu disse? Pára com essa zoeira! (Paco continua a tocar.) TONHO É surdo, desgraçado? (Tonho vai até Paco e o sacode pelos ombros.) TONHO Você não escuta a gente falar? PACO (Calmo.) Oi, você está aí? TONHO Estou aqui para dormir. PACO E daí? Quer que eu toque uma canção de ninar? TONHO Quero que você não faça barulho. PACO Puxa! Por que? TONHO Porque eu quero dormir. PACO Ainda é cedo. TONHO Mas eu já quero dormir. PACO Mas não vai conseguir. TONHO Quem disse que não?

PACO

As pulgas. Essa estrebaria está assim de pulgas. TONHO Disso eu sei. Agora quero que você não me perturbe. PACO Poxa! Mas o que você quer? TONHO Só quero dormir. PACO Então pára de berrar e dorme. TONHO Está bem. Mas não se meta a fazer barulho. (Tonho volta para sua cama, Paco recomeça a tocar.) TONHO Pára com essa música estúpida! Não entendeu que eu quero silêncio? PACO E daí? Você não manda. TONHO

Palavra? PACO Juro. TONHO Então toma. (Tonho joga a gaita na cama de Paco.) Se tocar, já sabe. Pego outra vez e quebro. (Paco limpa a gaita e a guarda. Olha o sapato, limpa-o com a manga do paletó.) PACO Você arranhou meu sapato. (Molha o dedo na boca e passa no sapato.) Meu pisante é legal pra chuchu. (Examina o sapato.) Você não acha bacana? TONHO Onde você roubou? PACO Roubou o quê? TONHO O sapato. PACO Não roubei. TONHO Não mente. PACO Não sou ladrão. TONHO Você não me engana. PACO Nunca roubei nada. TONHO Pensa que sou bobo? PACO Você está enganado comigo. TONHO Deixa de onda e dá o serviço. PACO Que serviço? TONHO Está se fazendo de otário? Quero saber onde você roubou esses sapatos. PACO Esses? TONHO É. PACO Mas eu não roubei. TONHO Passou a mão. PACO Não sou disso. TONHO Conta logo. Onde roubou? PACO Juro que não roubei. TONHO Canalha! Jurando falso. PACO Não enche o saco, poxa! TONHO Então se abre logo. PACO Que você quer? Não roubei e fim. TONHO Mentiroso! Ladrão! Ladrão de sapato! PACO Cala essa boca! TONHO

Ladrão sujo! PACO Eu não roubei. TONHO Ladrão mentiroso! PACO Não roubei! Não roubei! TONHO Confessa logo, canalha! PACO (Bem nervoso) – Eu não roubei! Eu não roubei! Eu não roubei! (Começa a chorar.) Não roubei! Poxa, nunca fui ladrão! Nunca roubei nada! Juro! Juro! Juro que não roubei! Juro!

TONHO

(Gritando) - Pára com isso! PACO Eu não roubei. TONHO Está bem! Está bem! Mas fecha esse berreiro. (Paco pára de chorar e começa a rir.) PACO Você sabe que eu não afanei nada. TONHO Sei lá. PACO O pisante é bacana, mas não é roubado. TONHO Onde achou? PACO Não achei. TONHO Onde conseguiu, então? PACO Trabalhando. TONHO Pensa que sou trouxa? PACO Parece. (Ri.) TONHO Idiota. (Paco ri.) TONHO Nós dois trabalhamos no mesmo serviço. Vivemos de biscate no mercado. Eu sou muito mais esperto e trabalho muito mais do que você. E nunca consegui mais do que o suficiente pra comer mal e dormir nesta espelunca. Como então você conseguiu comprar esse sapato? PACO Eu não comprei. TONHO Então roubou. PACO Ganhei. TONHO De quem? PACO De um cara. TONHO Que cara? PACO Você não manha. TONHO Nem você. PACO Não manjo, mas ele me deu o sapato. TONHO

Você me paga. TONHO Quer mais? PACO Não sabe brincar, canalha! TONHO Eu não estava brincando. PACO Vai ter forra. TONHO Você não é de nada. PACO Você não perde por esperar. TONHO Deixa isso pra lá. Não foi nada. PACO Não foi nada porque não foi na sua cara. (Tonho ri.) PACO Mas isso não vai ficar assim, não. TONHO Não. Vai inchar pra chuchu. (Ri.) PACO Está muito alegre. TONHO Poxa, você não gosta de tirar um sarro? PACO Quem ri por último, ri melhor. TONHO Agora cale a boca. Fiquei cansado de bater em você. Quero dormir. PACO Se tem coragem de dormir, dorme. TONHO Que quer dizer com isso? PACO Nada. Dorme... TONHO Vai querer me pegar dormindo? PACO Não falei nada. TONHO Nem pense em me atacar. Não esqueça a surra que te dei. PACO Não esqueço fácil. TONHO Acho bom. E fique sabendo que posso te dar outra a hora que eu quiser. PACO Duvido muito. TONHO Fecha essa latrina de uma vez, paspalho. PACO Falo quanto quiser. TONHO Você só sabe resmungar. PACO Você sabe muita coisa. TONHO Mais do que você, eu sei. PACO Muito sabido. Por que, em vez de carregar caixa no mercado, não vai ser presidente da república? TONHO Quem pensa que eu sou? Um estúpido da sua laia? Eu estudei. Estou aqui por pouco tempo. Logo arranjo um serviço legal.

PACO

Vai ser lixeiro? TONHO Não, sua besta. Vou ser funcionário público, ou outra droga qualquer. Mas vou. Eu estudei. PACO Bela merda. Estudar, pra carregar caixa. TONHO Só preciso é ganhar uma grana pra me ajeitar um pouco. Não posso me apresentar todo roto e com esse sapato. PACO Se eu tivesse estudado, nunca ia ficar assim jogado fora. TONHO Fiquei assim, porque vim do interior. Não conhecia ninguém nessa terra, foi difícil me virar. Mas logo acerto tudo. PACO Acho difícil. Você é muito trouxa. TONHO Você é que pensa. Eu fiz até o ginásio. Sei escrever à máquina e tudo. Se eu tivesse boa roupa, você ia ver. Nem precisava tanto, bastava eu ter um sapato... assim como o seu. Sabe, às vezes eu penso que, se o seu sapato fosse meu, eu já tinha me livrado dessa vida. E é verdade. Eu só dependo do sapato. Como eu posso chegar em algum lugar com um pisante desses? Todo mundo, a primeira coisa que faz é ficar olhando para o pé da gente. Outro dia, me apresentei pra fazer um teste num banco que precisava de um funcionário. Tinha um monte de gente querendo o lugar. Nós entramos na sala pra fazer o exame. O sujeito que parecia ser o chefe bateu os olhos em mim, me mediu de cima a baixo. Quando viu o meu sapato, deu uma risadinha, me invocou. Eu fiquei nervoso paca. Se não fosse isso, claro que eu seria aprovado. Mas, poxa, daquele jeito, encabulei e errei tudo. E era coisa fácil que caiu no exame. Eu sabia responder aqueles problemas. Só que, por causa do meu sapato, eu me afobei e entrei bem. (Pausa). Que diz Paco? PACO Digo que quando você começa a falar, você enche o saco. TONHO Com você a gente não pode falar sério. PACO Você só sabe chorar. TONHO Estava me abrindo com você, como um amigo. PACO Quem tem amigo é puta de zona. TONHO É... (Pausa longa. Paco tira a gaita do bolso e fica brincando com ela.) TONHO Quer tocar, toque. PACO Posso tocar? TONHO Faça o que lhe der na telha. PACO Não vou perturbar o seu sono? TONHO Não. Pode tocar. PACO Tocarei em sua honra. (Paco começa a tocar. Tonho acende um cigarro e dá uma longa tragada.)

(Luz apaga.) (Fim do Primeiro Quadro)

Segundo Quadro

(Paco está deitado, entra Tonho, Paco pára de tocar.)

TONHO

Pode continuar tocando. PACO

PACO

Se você não sabe, eu vou saber? TONHO Alguém aprontou pra mim. PACO Azar o seu. O negrão é fogo numa briga.

TONHO

Só queria saber por que ele ficou com bronca de mim. PACO O que eu sei é que ele está uma vara com você. (Pausa) Agora você não vai poder mais baixar no mercado. TONHO Por que não? PACO Vai me enganar que você vai encarar o negrão? Ele come a tua alma. O negrão é esperto. Você não conhece ele. Briga paca. Uma vez ele pegou um chofer que dava uns dez de você, quase matou o desgraçado de tanta porrada que deu. (Pausa) Você tem medo do negrão? TONHO (Sem convicção) – Eu, não. PACO Boa, Tonho! Assim é que é. Homem macho não tem medo de homem. O negrão é grande, mas não é dois. (Pausa) Você vai encarar ele? TONHO Sei lá! Ele não me fez nada. Nem eu pra ele. PACO Poxa, ele disse que você é fresco. Vai lá e briga. Ele é que quer. TONHO Você só pensa em briga. PACO Eu, não. Mas se um cara começar a dizer pra todo mundo que eu sou fresco, e os cambaus, eu ferro o miserável. Comigo é assim. Pode ser quem for; folgou, dou pau. (Pausa) Como é? Vai fazer como eu, ou vai dar pra trás? TONHO Você podia quebrar meu galho com o negrão. PACO Eu, não. Em briga dos outros, eu não me meto. TONHO Bastava você saber o que eu fiz pra ele. PACO Poxa, em que caminhão você trabalhou hoje? TONHO NO caminhão de peixe. PACO Era o caminhão do negrão. Ele sempre trabalha aí. TONHO Mas o negrão nem estava no mercado. PACO E daí? Só porque ele não estava, você foi pondo o bedelho? TONHO O chofer é que quis. PACO Deixa querer, quando é assim. TONHO Eles não iam ficar esperando a vida toda pra descarregar. PACO Isso não é problema seu. TONHO Se eu não pegasse, outro pegava. PACO E pegava também a bronca do negrão. (Pausa) PACO O que você vai fazer?

TONHO

Vou falar com ele. PACO Olha que ele te capa. Ele não é de dar arreglo. TONHO Que vou fazer, então? PACO Sei lá! O negrão sacaneado é espeto. (Pausa) TONHO O único jeito é falar com o negrão. PACO Não vai dar pé. TONHO Então não tem remédio. PACO Quando você ver ele, antes de conversar, dá uma porrada. TONHO Depois ele me mata. PACO Mata ele primeiro. Você não é macho? TONHO Mas não estou a fim de matar ninguém. PACO Poxa, você é um cagão. O negrão não é bicho. TONHO Disso eu sei. PACO Então calça a moleira dele. (Pausa) Quer que eu avise que você vai topar ele? TONHO Pra que isso? Não precisa avisar nada. PACO Limpa a tua barra. O negrão pode ficar pensando que você é de alguma coisa. Eu duvido, mas às vezes ele é até capaz de afinar. TONHO A única saída é bater um papo com ele. PACO Você não está a fim de briga, já vi tudo. TONHO E não estou mesmo. PACO Homem de merda que você é. TONHO Só por que não quero me pegar com o negrão? PACO Poxa, ele anda dizendo que você é fresco. Deixa barato, vai deixando. Um dia a turma começa a passar a mão no teu rabo, daí vai querer gritar, mas já é tarde, ninguém mais respeita. (Pausa) TONHO Eu não posso brigar com o negrão! Será que você não se manca? O negrão é um cara sem eira nem beira, não tem onde cair morto. Para ele tanto faz, como tanto fez. Não conta com o azar, entendeu? PACO Você está é com o rabo na mão. TONHO Não é medo. É que posso evitar encrenca. Falo com o negrão e acerto os ponteiros. Poxa, se eu faço uma besteira qualquer, minha mãe é que sofre. Ela já chorou paca no dia que saí de casa. PACO Vai me enganar que você tem casa? TONHO Claro, como todo mundo. PACO Então, que veio fazer aqui? Só encher o saco dos outros? Poxa, fica lá na sua casa.

PACO

Eu, te emprestar meu sapato? Não tenho filho do seu tamanho. TONHO É só um dia. PACO Sai pra lá. Se vira de outro jeito. TONHO Poxa, Paco. Me quebra esse galho. Amanhã mesmo ia procurar emprego. Não precisava mais voltar nessa merda desse mercado. PACO Quem gosta de você é o negrão. Ele vai ficar muito triste se você não baixar mais no mercado. TONHO Você até parece que quer ver minha caveira. PACO Quero ver você se pegar com o negrão. Isso é que eu quero ver. (Pausa) Se o negrão te pega, não vai adiantar chamar pela mamãe. Ele vai te arrebentar. TONHO Amanhã a gente vê como vai ser. PACO Vou cagar de rir. TONHO Não vai acontecer nada. PACO Vai fugir? TONHO Eu, não. PACO Poxa, o cara é machão. TONHO Não sou mais valente que ninguém. PACO Se pensa que vai engrupir o negrão, está enganado. O negrão é vivo paca. Ele vai te enrabar.

(Os dois ficam quietos. Luz apaga.) ( Fim do Segundo Quadro.)

Terceiro Quadro

(Tonho está deitado, Paco vai entrando. Senta-se na cama, fica olhando fixo para Tonho. Só depois de muito tempo é que fala.)

PACO

Você é um trouxa. TONHO Você não tem nada que ver com a minha vida. PACO Afinou como uma bicha. Poxa, que papelão! TONHO Papelão, não. Bati um papo com o negrão, ficou tudo certo. PACO Você é que acha. TONHO O negrão está legal comigo. Até tomamos umas pinguinhas juntos. PACO Muito bonito pra sua cara. O sujeito te cafetina, você ainda paga bebida pra ele. Você é um otário. Deu a grana do peixe pro negrão. Quem trabalha pra homem é relógio de ponto ou bicha. Depois que você se arrancou, ele tirou um bom sarro às tuas custas. Todo mundo mijou de rir. TONHO O negrão contou que eu dei dinheiro pra ele? PACO Claro! Você é trouxa. E agora todo mundo sabe. TONHO

Só dei metade. Foi pra evitar briga. Eu estudei, não preciso me meter em encrenca. PACO E acha que livrou sua cara? TONHO Então? Agora tá tudo certo. PACO Só que todo dia ele vai te dar uma prensa. TONHO Não sei por quê. PACO Porque você é um trouxa. Ele disse que não pega mais no pesado. É só ver você num caminhão, ele chega como quem não quer nada e diz que era carreto dele. Daí, te achaca. Se você achar ruim, te sapeca o braço e leva toda a grana. Se você ficar bonzinho, é tudo meio a meio. (Pausa) O negrão é um sujeito de sorte. Arranjou uma mina. O apelido dele ficou “Negrão Califa”. Bota as negas dele pra se virar, enquanto ele fica no bem-bom enchendo a cara de cachaça. (Pausa) Você está frito e mal pago. Otário só entra bem. (Pausa) TONHO O negrão está enganado comigo. PACO Não sei por quê. Ele é vivo, conhece o gado dele. TONHO Se ele pensa que vou trabalhar pra ele, está muito enganado. PACO Você já trabalhou um dia. TONHO Eu só quis evitar encrenca. PACO E se deu mal. Por isso eu falei que você tinha que encarar. Não me escutou, é metido a malandro, caiu do cavalo. Homem não corre do pau. TONHO Eu não quero nada disso. Eu estudei, Paco. Amanhã ou depois, compro um sapato, arrumo um emprego de gente e nunca mais quero saber do mercado. PACO Não vai ser mole. Se antes de você trabalhar pra homem, não dava, agora então é que não dá mesmo. TONHO O negrão não pode fazer isso comigo. Não é direito. PACO Quem mandou você afinar? Agora é dureza fazer a moçada pensar que você é de alguma coisa. Seu apelido lá no mercado agora é “Boneca do Negrão”. TONHO Boneca do Negrão é a mãe! PACO (Avançado) – A mãe de quem? TONHO Sei lá! A mãe de quem falou. PACO Veja, Boneca do Negrão! Não folga comigo, não. Já tenho bronca sua porque inveja meu sapato. Se me enche o saco, te dou umas porradas. Depois, não adianta contar pro teu macho, que eu não tenho medo de negrão nenhum. TONHO Cala essa boca! PACO Está confiando na sorte, Boneca do Negrão! TONHO Não quero mais conversa com você. PACO Agora a Boneca só fala com o negrão. Mina certinha é assim. O negrão está bem servido. TONHO Poxa, Paco, vê se me esquece. (Pausa) Tonho deita-se de costas para Paco.) PACO Volta pra casa do papai, Boneca. Lá o negrão não pega você. (Pausa) Lá no mercado você está de barra suja. Se eu fosse você, não ia mais lá. (Pausa) Amanhã vai ser fogo pra você. Todo mundo vai te tomar o pelo.

TONHO

Já te disse que não posso. PACO Só porque ele é grande? Quanto mais alto, maior o tombo. TONHO Não é isso, poxa. Eu estudei. Uma briga com o negrão não acaba nunca. Se eu acerto ele hoje, ele me pega de faca amanhã. Se escapo amanhã, ele me pega depois. Só acaba com a morte. PACO Mata ele. TONHO Eu estudei, meu chapa. Não estou a fim de apodrecer na cadeia por causa de um desgraçado qualquer. PACO Então volta pra casa do papai. TONHO Também não posso. Preciso acertar minha vida aqui. Lá naquela cidade não tenho o que fazer. Os empregos já estão ocupados, ou pagam menos que aí no mercado. Preciso acertar logo pra ajudar minha família. Já fizeram um puta sacrifício pra eu estudar. Não sei como fui ficar nessa fossa. PACO É. Você está perdido e mora longe. TONHO Pra você ver. Minha situação não é mole. Por isso que às vezes perco a esportiva com você. PACO Não me venha com essa. Seu negócio comigo você já falou outro dia. É a bronca do meu pisa, que você acha legal paca. Até começou a dizer que eu tinha roubado. TONHO Não é nada disso. PACO É inveja. Por isso que você se invoca quando toco gaita. TONHO Deixa de bobagem, Paco. PACO Bobagem? Inveja é um troço que atrapalha a vida dos outros. TONHO Meu problema é outro. Eu fico pensando na minha casa, no meu pessoal. PACO Corta essa onda! Essas suas histórias me dão um puta sono. Só sabe falar papai, mamãe. Poxa, que papo furado esse seu. Depois não quer que a moçada te ache fresco. TONHO É, acho que você tem razão... (Pausa) Eu acho que é isso mesmo. Implico com você por causa do sapato. PACO Confessou que tem inveja de mim. Eu já sabia desde outro dia. TONHO Não é inveja de você, que é um coitado. É por causa dos meus sapatos que são velhos. Eu tenho vergonha deles. PACO O meu pisante é novo e brilhante. TONHO Um pouco grande pra você. PACO Boto um pouco de jornal e ele fica uma luva. TONHO Pra mim, que sou mais alto que você, ele deve servir direitinho. PACO Mas é meu. TONHO Eu sei... Eu sei... (Pausa longa. Paco começa a tocar sua gaita. Tonho fuma. Depois, pega do seu paletó, que está debaixo do travesseiro, um revólver.) TONHO Sabe, Paco, às vezes eu até penso que você é um bom chapa. PACO Está afinando, paspalho?

(Tonho aponta o revólver pra Paco.) TONHO Estou pensando seriamente em conseguir um sapato igual ao seu. PACO Pede pro negrão. (Ri.) (Paco vê o revólver na mão de Tonho, pára de rir.) PACO Que é?... Poxa, não vem com idéia de jerico pra cima de mim... Que é?... Quer roubar meu pisante? TONHO Não precisa ficar com medo. Não vou te roubar. O berro está sem bala. PACO Pra que isso, então? TONHO Foi o que o cara lá do mercado deu pra eu passar nos cobres. PACO Poxa, pensei... Poxa, você é um bom cara. Fiquei encagaçado. Pensei que você ia afanar o meu sapato. TONHO Não tinha pensado nisso, mas até que é uma boa idéia. PACO O revólver está sem bala, lembra? Você mesmo que falou. TONHO É, está sem bala. PACO É bom não esquecer isso. Que sem arma, ninguém bota a mão no meu sapato. TONHO Pode ficar sossegado, não vou tentar.

PACO

(Pega um alicate.) Agora fique sabendo de uma coisa: se vier com parte de besta, vai levar ferro. TONHO Você é muito valente. PACO Não tem negrão nenhum pra tirar dinheiro de mim. TONHO Corta esse papo! PACO Então não se mete comigo. (Pausa) TONHO Só queria saber onde você conseguiu esse sapato. PACO Já falei. Um cara me deu. TONHO A troco de nada? PACO Ele me viu tocar, gostou e me deu. TONHO Poxa, não mente. PACO Não estou mentindo. TONHO Você vai querer que eu engula essa conversa? PACO Se não quiser acreditar, se dane. TONHO Poxa, você toca mal paca. PACO Gaita, eu toco mal, paspalhão. Eu estou tentando aprender. Mas na flauta eu sou cobra. TONHO Você toca flauta? PACO Eu tiro tudo quanto é chorinho.

TONHO

(Como desculpa) – Eu ando bronqueado... É por causa desses sapatos. (Paco volta a tocar.)

TONHO

Se eu tivesse os sapatos, tudo seria fácil. Eu arranjava um bom emprego. (Pausa) Sabe, Paco, eu estive pensando que você podia me emprestar o seu sapato. PACO Ficou goiaba? TONHO Só até eu arrumar emprego. PACO Olha pra minha cara. Vê se eu tenho cara de trouxa. TONHO É só pra me ajudar. Depois que eu tiver trabalhando, te ajudo a comprar a flauta. PACO Olha pra você. (Faz gesto.) TONHO Poxa, você não entende nada. PACO Te manjo, vagabundo. te empresto meu pisante, você se manda e eu fico ali no ora-veja. TONHO Não é nada disso. Só pensei... PACO Pensando morreu um burro. TONHO Que devia ser teu pai. PACO Que dormia com sua mãe. TONHO Chega, pombas! PACO Chega, uma ova! TONHO É melhor calar a boca. PACO Cala a tua primeiro. TONHO Está bem. PACO Pô, só sabe agourar meu sapato. TONHO Chega, poxa! PACO É isso mesmo. Toda noite é o mesmo papo furado. Ando até apavorado de tirar o pé do sapato. Tenho medo de dar sopa e você afanar. TONHO Não sou ladrão. PACO Sei lá. TONHO É melhor mixar esse assunto. PACO Você que começou. TONHO Então acaba. PACO Acaba. (Os dois ficam quietos.) TONHO Só preciso de um sapato. Eu estudei, poxa. Podia ser até alguém na vida. Sou inteligente, podia ter uma chance. Não precisava viver nessa bosta como um vagabundo qualquer. Tenho que aturar até desaforo.

PACO

Você fala bonito. TONHO Só preciso de um sapato. PACO E daí? Eu só precisava da flauta. (Tonho acende um cigarro. Está nervoso.) TONHO Estou pensando... PACO Você pensa muito, vai acabar queimando a mufa. (Pausa) TONHO Já dormiu, Paco? PACO Não. TONHO Tá pensando em quê? PACO Se eu tivesse a minha flauta, me mandava agora mesmo. Não ia te aturar nem mais um pouco. Você é chato paca. TONHO Você pensa que eu te adoro? Se tivesse sapato, já tinha me mandado. (Paco começa a tocar.) TONHO Poxa, você precisa mesmo da flauta. Na gaita, você é uma desgraça. PACO Sem sapatos, você não vai longe. Não vai fugir do negrão. Só vai entrar bem. TONHO (Gritando) – Eu preciso de um sapato. Eu preciso de um sapato novo. PACO Boa, durão. Gritar como uma múmia resolve paca. TONHO É... Não sei o que fazer. PACO Você está bem estrepado. Não tem sapato. Não pode mais dar as caras no mercado. Não que voltar pra casa do papai. TONHO Não que voltar, não. Não posso aparecer desse jeito lá em casa. PACO Eu sei de uma saída pra você. TONHO Qual é? PACO Você não vai topar. TONHO Fala. PACO Compra uma bala e apaga o negrão. TONHO Você é louco. Não sou assassino. Eu estudei... PACO Eu sei, eu sei. Tem família e prefere ser a Boneca do Negrão. TONHO Prefiro nada. PACO Então mete um caroço na testa do bruto. (Pausa) TONHO O crime não resolve. PACO Pelo menos o negrão não te torrava a paciência nunca mais. TONHO Eu não quero matar ninguém. Só queria me livrar dessa joça de vida.